Nem a bala de prata, ansiada por tantos, muito menos uma espoleta, tiro de festim ou n’água, como fingiu o presidente Jair Bolsonaro. Os efeitos da exibição do vídeo da reunião ministerial de 22 de abril se parecem mais aos da proibida dum-dum: estilhaçam o alvo por dentro. Expõem as vísceras de um presidente que pensa nele e em sua família acima de tudo e todos, e de um governo avesso à democracia, com uma visão bizarra e ultrajante de liberdade.
Para além das afirmações claras do presidente de que tentava – insistentemente, e sem sucesso – intervir na Polícia Federal, estopim da saída de Sérgio Moro do Ministério da Justiça, a reunião, em linguajar chulo, com xingamentos e palavrões, tem pólvora suficiente para explodir o governo.
O ministro da Educação Abraham Weintraub revela sem qualquer escrúpulo que gostaria de mandar “vagabundos para cadeia, a começar pelo STF”. Ricardo Salles, do Meio-Ambiente, sugere aproveitar o “momento de tranquilidade” em que a imprensa está voltada à Covid-19 para “ir passando a boiada”, mudando normas anti-ambientais e do agronegócio. Paulo Guedes, que gostaria de vender a “porra” do Banco do Brasil logo, se cala quando o presidente diz que só vai falar disso em 2023, depois das eleições. E Damares Silva ameaça até prender governadores e prefeitos, mentindo sobre a extensão do decreto pró-isolamento do governador do Piauí, Wellington Dias.
Um circo de horrores.
Mas nada é tão tortuoso – e perigoso – quanto a acepção dada à liberdade. No dicionário do presidente, liberdade tem um significado maligno. Está associada à devoção e só pode ser desfrutada por quem segue suas ideias. Bolsonaro a entende como combate renhido à civilização, à sociedade organizada, às leis de convívio, contra as quais é necessário guerrear com todas as armas.
Sem tirar nem pôr, defende a barbárie, o olho por olho, uma terra onde cidadãos reajam à bala quando se sentem lesados. Especificamente diante das restrições impostas pela Covid-19, que possam sair atirando no prefeito que exigir confinamento.
“O povo armado jamais será escravizado”, frase que cravou para defender o armamento “escancarado” da população na fatídica reunião, é uma evolução tirânica das palavras de ordem “o povo unido jamais será vencido”, usadas nos protestos contra a ditadura.
Mas, enquanto a reação contra o regime militar era de vozes (poucas foram as iniciativas de luta armada) em oposição a um governo imposto por um golpe de Estado, a ambição de Bolsonaro parece ser a de poder contar com uma milícia armada capaz de defendê-lo contra inimigos imaginários e os que sua incapacidade de governar criou.
Assemelha-se, claro, a Hugo Chávez e outros ditadores contemporâneos que usaram a democracia para se eleger e, em seguida, a vilipendiaram para satisfazer suas expectativas permanentes de poder. Fascistas que acusam o outro de fascismo, assim como Bolsonaro faz ao inverter quem seriam os agentes da ditadura.
Embora o modus operandi seja parecido, cada país tem suas peculiaridades. Na Venezuela, a oposição cometeu o erro de não participar das eleições. Entregou o Parlamento de bandeja a Chávez, permitindo que ele mudasse a Constituição e a composição da Suprema Corte.
Para desespero de Bolsonaro e dos seus, por aqui o andor é outro.
O STF tem dado demonstrações sucessivas de que não está disposto a sucumbir. No Congresso, a oposição e os que têm juízo começam a fazer ruído. Restou ao governo apelar para a banda podre, negociando cargos em troca de apoio a um cada vez mais provável processo de impeachment. Uma turma da velha política com a qual Bolsonaro conviveu alegremente por quase três décadas. Que, como ele bem sabe, custa caro e não garante fidelidade, mudando de lado quando a conveniência dita.
Definitiva para dar materialidade ao desgoverno Bolsonaro, a reunião não deixou dúvidas quanto ao planejamento zero diante da pandemia. Mais: os impropérios ditos sobre governadores e prefeitos que batalham para proteger os cidadãos do flagelo e o descaso com a vida de milhares dos brasileiros ficarão no pós-vídeo, assombrando qualquer campanha que ele ouse fazer no futuro.
O presidente, que os bolsonaristas fiéis querem vender como autêntico, como quem não usa filtros ao falar, expôs mais uma vez que só pensa nele e no seu clã. É incapaz de um gesto de humanidade, é incapaz de governar. A arma ou munição pouco importam – o vídeo é letal.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 24/5/2020.
Mary, no alvo, equibrado, realista , absolutamente perfeito.