“O Congresso é hoje um poder que está comprometido, que se compõe de uma minoria de privilegiados. Aquele Congresso não dará mais nada ao povo brasileiro. Por que não transferir a decisão para o próprio povo brasileiro, fonte de todo o poder?”
A declaração é de Leonel Brizola, no comício da Central de 13 de março de 1964. Cinquenta e seis anos depois, o fechamento do Congresso volta a ser pregado nas ruas do Brasil, mas com sinal trocado. Se no passado a violação da legalidade foi obra de uma esquerda que tentava atrair as Forças Armadas para uma aventura, hoje é a direita radical que tenta subverter a ordem com seu discurso contra dois poderes da República, Legislativo e Judiciário, e em defesa de intervenção militar.
O paralelo com 1964 é inescapável. Naquela época, o então presidente João Goulart subia no palanque ao lado dos “generais do povo”, entre eles o então ministro da Guerra, Jair Dantas Ribeiro. Hoje é Jair Bolsonaro que sobe no palanque para dizer que os militares estão com ele e com o povo.
Em comum, a tentativa de instrumentalização das Forças Armadas, uma instituição de Estado com funções constitucionais bem definidas, como a própria nota do ministro da Defesa fez questão de ressalvar após o ato pró-intervenção militar do último domingo.
O golpe de 1964 foi ungido em nome da defesa da legalidade e do combate à subversão. Ironicamente, hoje quem subverte a ordem é uma direita fanatizada, que atenta contra cláusulas pétreas da Constituição, como a liberdade de imprensa.
Os métodos da direita subversiva guardam semelhanças com os “fasci de combattimento”, milícias formadas por Benito Mussolini em 1919 e que, três anos depois, foram a coluna vertebral da Marcha sobre Roma. Não há, por parte de Bolsonaro, uma só palavra de condenação das agressões físicas a jornalistas e enfermeiros. Ao contrário, ele insufla suas falanges, quando não parte para o diversionismo dizendo que elas são obra de infiltrados.
“A marcha sobre Brasília” está em curso. Seu propósito pode ser o auto golpe, que o presidente mal consegue disfarçar. Se vai conseguir arrastar as Forças Armadas para a aventura são outros quinhentos.
É de se estranhar o ensaio do presidente para substituir o comandante do Exército, general Edson Pujol – um soldado de comportamento exemplar – por um general mais sintonizado com seus planos.
Recuou momentaneamente dada às resistências do estamento militar. Além do mais, seu nome de sonhos para assumir o posto de comandante do Exército, general Eduardo Ramos, violaria um critério que tem sido observado ao longo de diversos governos, o da antiguidade.
O modus operandi de Bolsonaro é de não desistir. Recua para em seguida voltar com força até conseguir seu objetivo. Está aí o episódio do novo diretor-geral da Polícia Federal para confirmar. Ele não desistirá enquanto não demitir o atual comandante do Exército.
Ao contrário da afirmação do presidente, as Forças Armadas não endossam muitos de seus atos . Como vivemos tempos anormais, elas foram obrigadas a se pronunciar por duas vezes em 15 dias. É alentador o fato de na nota desta segunda-feira o general Fernando Azevedo e Silva ter reafirmado o compromisso das três armas com a Constituição, a democracia e a liberdade. O ministro da Defesa realçou o papel das Forças Armadas como instituições de Estado. Para bom entendedor meia palavra basta.
Sim, os militares concordam com a queixa de Bolsonaro em relação ao ativismo judicial que estaria presente em algumas decisões monocráticas de ministros do STF. Entre isso e o aval às incursões antidemocráticas do presidente há uma enorme distância. Até porque personalidades insuspeitas, como o ex- presidente Fernando Henrique Cardoso, tiveram o mesmo ponto de vista em relação ao episódio que inviabilizou a nomeação de Alexandre Ramagem para novo diretor da Polícia Federal.
A Constituição delegou ao STF o papel de poder moderador. Ele só será realizado de forma virtuosa se a Suprema Corte não for parte do contencioso, observando a independência e a harmonia entre os poderes. Vai nessa direção a sugestão do ministro Marco Aurélio Mello de que questões envolvendo os outros poderes sejam apreciadas pelo pleno da Corte.
Não se deve dar pretextos para essa direita avançar na subversão da ordem. A observância rígida da legalidade é hoje a bandeira a ser empunhada para evitar que 1964 se repita, dessa vez sob forma de farsa.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 6/5/2020.