“Parece ter sido reservado ao povo deste país, por sua conduta e exemplo, o veredicto da importante questão: se as sociedades humanas são de fato capazes de estabelecer um bom governo a partir da razão e da escolha, ou se elas estão para sempre destinadas a depender do acaso e da força”.
As palavras de Alexander Hamilton, um dos pais fundadores dos Estados Unidos, em seu artigo ‘O FEDERALISTA NÚMERO UM” (assim mesmo, em caixa alta), de 30 de outubro de 1787, se encaixam como uma luva para definir o que estava em jogo na disputa entre Joe Biden e Donald Trump.
Em última instância, os americanos foram às urnas para decidir se os Estados Unidos retornariam a ser um país fundado em idéias sacramentadas em sua Constituição – chamadas de “estas verdades evidentes” por Thomas Jefferson e Benjamin Franklin – ou se aprofundariam a divisão e o ódio entre os americanos.
A provável vitória de Joe Biden na eleição mais concorrida da história do país indica que os Estados Unidos podem se reconciliar consigo mesmos. O democrata demonstra ter clara noção de qual será sua principal missão: unir os americanos, com base nos valores que fizeram dos Estados Unidos a democracia mais resiliente do mundo e por isso mesmo admirada mundialmente
Sua liderança veio não apenas da sua pujança econômica, mas também do poder de seus ideais. Entre eles, o da liberdade e o que vem da afirmação da Constituição fundadora de que todos os homens nascem livres e têm direitos iguais.
Isso não faz da América uma sociedade perfeita e sem desigualdades. Mas a superação de suas mazelas e o papel positivo que pode desempenhar no cenário internacional dependem da sua coerência com valores que, de resto, são de toda a humanidade.
Seria ilusório acreditar que, com a vitória de Biden, o trumpismo – essa corrente anti-histórica – desapareceu. Tanto está vivo que Donald Trump subverte a democracia americana ao tentar fraudar a verdade das urnas por meio de um tapetão amplo, geral e irrestrito. Em sua insanidade, Trump passa recibo de sua derrota e revela profundo desrespeito ao pronunciamento soberano de 160 milhões de eleitores americanos.
Difícil de crer que, sem qualquer evidência de fraude, a Justiça americana avalize uma chicana jurídica que faria dos Estados Unidos uma república bananeira. Isso jogaria o país em uma crise institucional sem precedentes.
A última eleição a não ser aceita foi a de Abraham Lincoln. A contestação levou à Guerra da Secessão, com muito derramamento de sangue e uma ferida que levou muito tempo para cicatrizar.
O trumpismo não está morto, mas recebeu um duro golpe. A derrota no chamado “Cinturão da Ferrugem”, onde venceu em 2016, é o maior atestado de que sua demagogia não resolveu os problemas dos Estados Unidos. Em vez de fazer a América Grande Novamente, apequenou-a tanto no concerto das nações como internamente. Em seu governo, a vocação cosmopolita da América deu lugar à xenofobia e ao isolacionismo, abdicando, assim, da vocação americana de liderar o mundo em sintonia com os valores democráticos. Hoje a supremacia americana está seriamente ameaçada pela China.
Há quatro anos a vaga nacional-populista chegava ao auge com sua vitória na maior economia do mundo. A derrota de Donald Trump em 2020 tende a ser o marco do refluxo da onda que varreu o mundo na segunda década do século. Soma-se à derrota de Matteo Salvini na Itália, da Alternativa para a Alemanha no país de Ângela Merkel, e no isolamento da extrema-direita na Espanha.
Os “engenheiros do caos”, para usar a definição do livro de Giuliano da Empoli, estão sendo derrotados porque negaram a ciência na maior pandemia do mundo em cem anos. No caso de Trump, seu negacionismo teve peso enorme para sua derrota, como evidenciam os resultados eleitorais nos grandes centros urbanos, exatamente onde a Covid 19 mais se espraiou e mais matou. A virada de Biden em estados decisivos se deu quando os votos por correio e antecipados foram abertos. Esse era o eleitorado que mais levou a sério a pandemia e mais percebeu o desastre do desempenho de Trump diante de uma doença que tirou até agora a vida de 230 mil americanos.
Sai derrotada também a política quântica, pautada na exacerbação da polarização, na disseminação de fake news, em teorias conspiratórias e na disseminação do ódio. Ela não desaparece, mas perde fôlego. Há uma chance para que a política deixe de ser a continuidade da guerra por outros meios, ou a guerra sem derramamento de sangue, para voltar a ser forma civilizada de as sociedades dirimirem seus conflitos.
Voltando a Alexander Hamilton: Joe Biden é a possibilidade de os Estados Unidos terem um bom governo pautado pela razão. Por aí a América voltará a ser grande. E admirada por todos os que amam a liberdade.
5/11/2020
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja.