Pane no extremo bolsonarismo

Aos primeiros sinais de que Joe Biden ultrapassara Donald Trump na disputa pela Casa Branca, o presidente Jair Bolsonaro corretamente substituiu as demonstrações de paixão desenfreada pelo republicano pelo necessário pragmatismo. E bagunçou a cabeça dos radicais da direita tropical. 

Tosco, mas querendo falar bonito, Bolsonaro se embaralhou, de propósito ou não, para desvencilhar-se do peso da derrota trumpista. “Eu não sou a pessoa mais importante do Brasil, assim como Trump não é a pessoa mais importante do mundo, como ele bem diz. A pessoa mais importante é Deus, a humildade tem de se fazer presente entre nós.” Ora, Trump sempre se considerou a pessoa mais importante do planeta e Deus não é uma pessoa, logo…

Mais impressionante ainda é o trecho sobre humildade, palavra inexistente no dicionário de ambos. A arrogância exibida por Trump no discurso da quinta-feira, quando desancou a democracia norte-americana e o sistema eleitoral que o elegeu há 4 anos, é prova cabal disso. O imitador tupiniquim não fica para trás: criou e difundiu a alcunha “mito”, acha-se ungido pela divindade.

Há tempos, Bolsonaro repete farsa semelhante à de seu ídolo, colocando em dúvida a lisura das urnas eletrônicas brasileiras, que teriam sido fraudadas em 2018 e estariam sujeitas a novas fraudes em 2022. Dizia ter provas concretas de que poderia ter vencido no primeiro turno, algo que, pela inexistência material, nunca apareceram. E disso não se falou mais.

Mas as propriedades camaleônicas de Bolsonaro – diz e depois desdiz, esbofeteia e alisa, elogia os que já xingou – podem render frutos para o Brasil nas relações com os Estados Unidos e, por tabela, com outras nações. Um pragmatismo bem-vindo e elogiável, embora residam dúvidas se o ministro Ernesto Araújo seria capaz de praticá-lo.

Além de Araujo, outras figuras-chave do governo, incluindo o presidente, terão mais dificuldades em misturar os interesses externos do Estado brasileiro às suas crenças ideológicas. O Itamaraty, por exemplo, não poderá mais ser um “puxadinho” dos ditames trumpistas.

Nem Trump e muito menos o trumpismo serão banidos. Continuarão fortes e bem alimentados pelas conspirações imaginárias que fazem sucesso nessa trupe. Mas sem o apoio oficial somem os cargos na Casa Branca e os assentos nos fóruns mundiais. Perdem-se estatura, glamour e recursos financeiros.

A repercussão desse baque por aqui é inevitável. Não à toa, Eduardo Bolsonaro, trumpista de primeira hora que desfilava com boné de campanha do candidato republicano, aliou-se à boataria de fraude nas apurações dos votos. Um escárnio para um parlamentar que preside a Comissão de Relações Exteriores da Câmara.

As dores para o 03 são ainda maiores. Alçado a líder sul-americano do The Movement, organização de direita eregida por Steve Bannon, estrategista da campanha vitoriosa de Trump em 2016, Eduardo, que queria ser embaixador nos EUA, perdeu em várias frentes. E viu seus líderes derreterem.

Figura polêmica, Bannon rompeu com Trump há quase 3 anos, mas continuou defendendo o ex-chefe com unhas e dentes. Em agosto do ano passado, dois meses antes de uma anunciada participação em um seminário que Eduardo organizava no Brasil, Bannon foi preso, acusado de desviar dinheiro arrecadado para a construção do muro entre os Estados Unidos e o México. Na sexta-feira, foi oficialmente banido das redes sociais por pregar a decapitação do médico Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Doenças Infecciosas, e de Christopher Wray, diretor do FBI. Segundo ele, os dois teriam traído Trump e mereciam ter suas cabeças cortadas e expostas na Casa Branca.

Os conservadores sérios, que viram o Partido Republicano se transformar em um reality show de qualidade deplorável, devem estar aliviados. Longe do real pensamento conservador, que sempre nutriu o mundo com soluções admiráveis nas mais profundas crises – nas duas grandes guerras ou na reconstrução do mundo pós-nazismo -, é em líderes aloprados como Trump, Bannon e outros da mesma estirpe, tipo Olavo de Carvalho, que o bolsonarismo extremo se espelha.

Tudo bem que queiram continuar com eles – a democracia garante qualquer escolha. Mas com Joe Biden liderando a maior democracia do mundo fica mais difícil meter o Brasil nisso.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 8/11/2020.

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