O mercado falou mais alto

Depois de uma semana de bate-cabeças — com os ministros Paulo Guedes e Rogério Marinho quase chegando às vias de fato —, o governo parece ter tomado um chá de juízo e desistido da idéia insana de furar o teto dos gastos para financiar o Renda-Cidadã. Com o recuo, o ministro da Economia saiu da situação “balança mais não cai”, ganhando sobrevida.

Até quando, não se sabe, dada às tentações populistas do presidente. Mas, inegavelmente, Guedes sai da refrega fortalecido enquanto Marinho teve de voltar algumas casas.

Seu fortalecimento deve-se a que, apesar de seus defeitos, como prometer muito e entregar pouco, além de sua enorme capacidade de brigar com quem não deve, seu nome ainda é a garantia para o mercado e a sociedade de que o governo não romperá com a agenda econômica vencedora nas eleições presidenciais de 2018. Se houve algum ganho nos anos pós Dilma Rousseff foi a consciência de que não há espaço para o governo expandir seus gastos, bem como para ampliar a carga tributária.

Bem ou mal, foi gerada uma cultura de responsabilidade que levou Guedes e o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, a arquivarem suas diferenças em torno do objetivo comum de preservação do teto. Daí, constituiu-se uma frente ampla que vai dos dois presidentes das casas do Congresso Nacional, passando pelo mercado e a equipe econômica. Se prosperar, essa frente deve desaguar na regulamentação do teto dos gastos e na desobstrução da agenda das reformas tributária e administrativa.

O populismo continua tendo suas casamatas no governo e no Parlamento, mas, por ora, está neutralizado no tocante à promoção da expansão irresponsável dos gastos governamentais. Para a inversão da correlação de forças que parecia favorável aos “desenvolvimentistas” – melhor seria defini-los como a turma da gastança – falou mais alto a voz do mercado, com um recado muito claro.

Os investidores fugiram para o dólar e o real é a moeda que mais se desvalorizou no mundo. Desde o início do ano o dólar se valorizou em 40%. Por outro lado a desconfiança fez com que o prazo dos títulos da dívida pública caísse pela metade, com o governo pagando o dobro da taxa Selic em títulos com vencimento em dois anos. Para os de prazo mais longo o governo  paga juros de 9% ao ano. O mercado teme que governo não honre suas dívidas e torpedeie a âncora fiscal representada pela emenda constitucional do teto dos gastos.

Se persistir, a ciranda da gastança terá dois efeitos extremamente perversos: o retorno da inflação e o comprometimento da retomada da economia, portanto do emprego.

A combinação do binômio inflação-estagnação econômica é deletéria para qualquer governo que busque a reeleição. Como o presidente Jair Bolsonaro só pensa nisso, pragmaticamente deve estar levando em conta que, mesmo eleitoralmente, terá muito mais a perder se seu programa de transferência de renda tiver como preço a volta da espiral inflacionária e da recessão econômica. Esses dois fatores foram fatais para a erosão do governo Dilma e, por conseguinte, para seu impeachment.

O grande desafio da equipe econômica é encontrar uma fórmula que transfira renda para as camadas que ficaram desprotegidas com a pandemia e, ao mesmo tempo, preserve o teto dos gastos. Ele é vital para que a dívida pública bruta, que ao final do ano baterá em 95% do PIB, não exploda de forma incontrolável.

A calibragem dos dois fatores exige uma obra de engenharia política que desague numa fórmula palatável para o Parlamento, o mercado e a sociedade. Das idéias já expostas na praça, a que tem mais chances de lograr êxito é a de financiar o Renda-Cidadã ceifando os três poderes, os altos salários que ultrapassam o teto salarial do funcionalismo público, hoje o salário de um ministro do Supremo.

Haverá a gritaria de corporações onde se encastelam a elite nababesca do funcionalismo. Mas a medida é socialmente justa, granjeia simpatias da opinião pública e preserva uma conquista que tanto custou aos brasileiros.

O grande problema para sua execução é que a alma do presidente e do seu entorno – o grupo de militares palacianos – sempre foi desenvolvimentista. Eles concordarão em cortar na própria carne, reduzindo a remuneração de militares que ultrapassam o teto salarial do funcionalismo público?

É nessa linha fina que Paulo Guedes terá de se equilibrar. Por enquanto, respaldado pela voz estridente do mercado e pelo comando do Congresso Nacional. Nem por isso a batalha está ganha.

Passadas as eleições, as pressões do Centrão e da turma da gastança que opera no interior do governo liderada por Rogério Marinho podem voltar com força. Sobretudo pelo desencanto do paraíso prometido aos milhões de beneficiários do auxílio emergencial que, de uma hora para outra, caem no inferno de Dante, sem ter como botar comida na mesa de suas famílias.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 7/10/2020. 

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