Agora vejam o herói. Tem um nórdico metro e cinquenta e dois e ia ganhando a guerra. Mas antes de falar deste finlandês de olhos agudos e mãos camponesas nas quais quase podemos apalpar a ternura com que o indicador direito acaricia o gatilho, deixem-me chamar aqui os canalhas.
Os canalhas são Hitler e Estaline. O nazi e o comunista já estão ao colo um do outro no abominável pacto em que se cevaram e já retalharam a Polónia, toma lá metade, dá cá metade. Cada canalha fareja o canalha que há no outro. Estaline teme que o canalha alemão dê a volta por cima e lhe entre pela porta de serventia meia escandinava que é a Finlândia. Com as boas maneiras insidiosas do antropófago, Estaline diz carinhosamente aos finlandeses que lhes vai comer 25 quilómetros de território ao longo da fronteira para protecção das suas nádegas georgianas. A rouca voz da Finlândia responde com um rotundo e já arquejante “não”. O canalha, socialista e científico, atira com 750 mil homens, uns seis mil tanques e quatro mil aviões para cima da Finlândia.
Os finlandeses deveriam cair numa tarde, num dia. E é aqui que entra o herói. Simo Häyhä estava em sossego camponês, serviço militar cumprido, mas é mobilizado. Traz, presa aos seus 34 anos cambutas, uma velha espingarda, a Mosin-Nagant M28, com anacrónica mira de aço. Veste a imaculada farda branca e vai, sozinho, fundir-se com a floresta de neve finlandesa. Rasteja, procura buracos de raposa, com gestos delicados calca a neve onde vai apoiar a arma para que, ao disparar, não se levante uma nuvem de partículas que o denuncie, mete na boca bolas de neve para matar o bafo quente da respiração e espera, invisível. Os soviéticos hão de vir. E quando vêm, um só tiro, mata o primeiro. Matará 505.
E tenho de voltar ao canalha. Estaline também ajudou a matar estes 505 russos. Na Grande Purga, de 1934 a 1938, o canalha liquidou dois terços dos quadros comunistas e cinco mil oficiais do Exército Vermelho, entre majores e generais. Nunca ninguém matara tantos comunistas como este Führer dos comunistas. Inexperientes, os novos oficiais do exército da URSS na Finlândia aprenderam a comer o pão da guerra com a massa que o diabo amassou. De farda escura os soviéticos eram coelhos vermelhos numa paisagem branca. Simo Häyä em cem dias mata 505. Cinco por dia se acreditarmos nessa história das médias, fora o dia em que matou quarenta. Vejam bem, um tiro, um homem. Na I Grande Guerra foram precisos sete mil tiros para cada baixa. No Vietnam 25 mil.
Os soviéticos chamam a Simo a “Morte Branca”. Num dos combates, Simo e mais 33 fazem recuar 4 mil soldados vermelhos. A artilharia matraqueia a posição onde Simo possa estar. E nada. Vem a aviação fazer terra rasa. E nada. A “Morte Branca” continua a devastar as hostes russas.
E ouçam os versos que cantavam os meus amigos que foram para heróis na guerra da independência de Angola: “Eu vou, eu vou morrer em Angola / Com arma, com arma de guerra na mão / Enterro, enterro será na patrulha, / Granada, granada será meu caixão.”
Sem saber que é isso que canta, a 6 de Março, Simo volta a avançar, rastejante, camuflado. Abate mais um inimigo e há de ser, desse dia, a última coisa de que se lembra. Um sniper soviético dá-lhe a comer do mesmo veneno. A bala estoira-lhe a bochecha e arranca-lhe a mandíbula. Os camaradas resgatam-no. Recupera a consciência no dia em que se assina a paz e há-de viver, com a sua meia cara de herói, uma vida de caçador de alces e criador de cães. Simo morreu em paz aos 96 anos.
Da Página Negra, texto publicado na coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.