O mundo vive hoje seu momento de maior tensão desde a crise dos mísseis de 1962. Estamos longe de uma terceira guerra mundial ou de um holocausto nuclear, mas nem por isso devem-se subestimar as consequências do ataque americano responsável pelo assassinato do general Qassim Suleimani, segundo homem do regime iraniano.
A delicadeza do momento exige dos governos e líderes mundiais muita prudência e comedimento, como vêm pregando Ângela Merkel, Emmanuel Macron e até mesmo Boris Johnson, que tem sido um firme aliado de Donald Trump. Mesmo a Rússia e a China, aliados estratégicos do Irã, estão pisando em ovos para o caldo não entornar de vez.
A ninguém minimamente responsável interessa o acirramento de um conflito que pode afetar profundamente a economia mundial.
Esperava-se do Brasil postura semelhante. Sobretudo porque a tradição de sua política diplomática é de não tomar partido em conflitos entre países, de atuar cooperando para saídas pacíficas, além de acompanhar e fortalecer ações de mecanismos multilaterais como a ONU.
O Itamaraty sempre se norteou por dois eixos: o compromisso com os valores universais e a defesa dos interesses brasileiros.
As primeiras reações, contudo, vão na direção oposta, ditadas por uma política externa pendular: a ideologia tem falado mais alto do que o bom e necessário pragmatismo. O Ministério do Exterior apressou-se em divulgar uma nota que é uma obra-prima de alinhamento automático com os Estados Unidos, mal disfarçando a defesa do ato de Donald Trump.
Essa visão ideológica coloca o regime iraniano no mesmo patamar do Al-Qaeda e do Estado Islâmico, ao contrário da ONU, que não qualifica o Irã como terrorista. Segue, ipsis litteris, a posição dos Estados Unidos. A consequência dessa política já se fez sentir, com o governo do Irã convocando a encarregada de negócios da embaixada brasileira para reclamar da nota do Itamaraty.
O Brasil só tem a perder com essa postura. O acirramento do conflito terá impacto no mercado mundial, com o preço do petróleo podendo chegar ao patamar de US$ 100, como já admitem alguns especialistas.
Nesse caso, o país será atingido duplamente. Os principais mercados de nossas exportações sofreriam retrações e, internamente, o governo ou rifaria sua política de não ingerência nos preços dos combustíveis ou teria de subsidiá-los, o que também geraria distorções. Traduzindo em miúdos: podemos ter mais inflação ou mais expansão dos gastos públicos. Um ou outro afetará o desempenho de nossa economia justamente quando ela dá sinais de recuperação.
Tampouco o Brasil está na situação que pode se dar ao luxo de dispensar mercados. A reclamação do Irã deveria servir de alerta quanto a possibilidade de as nossas exportações para os países islâmicos, um importante mercado do agronegócio, serem afetadas tanto pela generalização do conflito no Oriente Médio como pelo alinhamento com os Estados Unidos.
Não custa lembrar: esses países ficaram contrariados quando Bolsonaro revelou sua disposição de transferir a embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém, também por motivos ideológicos. Qual a vantagem do país em disseminar novas desconfianças em parceiros comerciais?
Por enquanto, o núcleo ideológico está dando as cartas, mas é precipitação acreditar que o Brasil pulará na piscina sem água, abraçado aos Estados Unidos. Na hora do vamos ver a economia costuma falar mais alto. Já aconteceu nas relações com a China, quando o núcleo pragmático formado pela ministra da Agricultura, Tereza Cristina, por militares do Planalto e pela equipe econômica, conseguiu se impor. É torcer para o milagre se repetir. O avesso disso é jogar para perder.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 8/1/2020.