Consuma-se nos próximos dias mais um ato do acordão para enterrar a Lava Jato, quando o Senado aprovará o nome de Kassio Nunes para substituir o ministro Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal. Sua sabatina será coisa para inglês ver, apesar dos indícios de fraude em seu currículo.
Falará mais alto a convergência de interesses de um amplo leque, que vai de Lula a Jair Bolsonaro, passando pelo Centrão, partidos e políticos envolvidos em denúncias de corrupção. Não basta apenas a salvação de todos – a começar a dos filhos do presidente e a do caudilho petista. É preciso também assassinar a imagem da Lava Jato para fraudar a história por meio de uma narrativa fantasiosa.
Se havia dúvidas quanto ao segundo objetivo, o senador Renan Calheiros foi de uma clareza meridiana: “Eu não sou da base do governo mas eu entendo que Jair Bolsonaro, para além das diferenças que nós temos, pode deixar um grande legado para o Brasil que é o desmonte desse estado policialesco que tomou conta do nosso país. Ele já encandeou várias medidas, desde o Coaf, a questão da Receita, a nomeação do Aras para a chefia do Ministério Público, a demissão do Moro e agora a nomeação do Kassio.”
Disputa-se não apenas a história, mas também o discurso com o qual se enfrentará as urnas, em 2022. A despeito dos rolos de sua prole, o presidente dirá que acabou com a Lava Jato porque seu governo acabou com a corrupção. E Lula assumirá de vez o papel de vítima de uma suposta perseguição política de um juiz e de um estado policial implantado no Brasil. Aqui a convergência é nítida. Os dois querem congelar o país numa polarização idêntica à de 2018.
A imagem de um presidente tosco, sem estratégia, não condiz com os fatos concretos. Bolsonaro sabia o que fazia quando escolheu Augusto Aras como Procurador-Geral da República, há um ano. Sim, é verdade, trocou sua base ideológica pelo Centrão por instinto de autopreservação, sobretudo quando sentiu o calibre do perigo, com a prisão de Fabrício Queiroz.
Mas já vinha mudando a estratégia. Se antes fazia “guerra de movimentos” passou a fazer “guerra de posições”, avançando em casamatas da República: a PGR, a Polícia Federal e agora o Supremo Tribunal Federal.
Seu próximo passo será ter no comando da Câmara dos Deputados alguém mais dócil do que Rodrigo Maia. Arthur Lira é o nome dos seus sonhos. Não gratuitamente a fiel escudeira de Augusto Aras, a subprocuradora Lindôra Araújo, “limpou” a ficha do deputado alagoano, rejeitando a denúncia da Lava Jato contra Lira. Lindôra foi escolhida a dedo por Aras para enquadrar a República de Curitiba.
A frente ampla pró-impunidade está formada, mas há pedras no caminho. A começar pela figura do novo presidente do STF, ministro Luiz Fux, defensor da Lava Jato. No seu primeiro ato na Corte, Fux mostrou a que veio: acabou com os julgamentos penais pelas turmas, que faziam da Corte uma loteria, com os réus sendo absolvidos ou condenados a depender da turma que apreciaria seu processo.
O outro complicador para a tentativa de duplo assassinato da Lava Jato responde pelo nome de opinião pública. Gostem ou não os Renans da vida, a operação marcou a sociedade pelo inegável mérito de, pela primeira vez, prender a turma do andar de cima. Antes dela, cadeia era coisa para preto, pardo e pobre, e o patrimonialismo reinava livre, leve e, sobretudo, solto. Grandes empresários e a nata de políticos sentiam-se intocáveis. O rigor da lei não era para eles.
A Lava Jato correspondeu ao anseio dos brasileiros pelo fim da impunidade, o que torna difícil o retorno ao patamar anterior. Mas não foi isenta de erros. Se de um lado representava a modernização do Estado em luta contra o patrimonialismo, de outro adquiriu ares messiânicos, fazendo emergir uma espécie de tenentismo de toga que cometeu excessos e erros no afã de passar o Brasil a limpo
Não se pode, contudo, em nome da correção dos erros, jogar fora a criança com a água suja da banheira. E transformar em mártires os que por anos a fio assaltaram os cofres públicos, apropriando-se de recursos que, se tivessem sido destinados para os devidos fins, melhorariam a vida dos brasileiros. Isso o Brasil não aceita mais.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 14/10/2020.