Alice no mundo do celular

Alice fazia questão de qualificar-se como “do lar”. Era sua marca, quando preenchia questionários para o crediário em loja de eletrodomésticos. A expressão correspondia inteiramente a sua faina.

Deixava a cama às 7 em ponto. Na cozinha, ligava a televisão, passava um café – e atacava a arrumação da casa. Às 10, punha a comida no fogo. E aí vinha seu diferencial. Esmerava-se em preparar pratos especiais, a serem servidos com gala.

De modo que, ao meio-dia, quando a clientela chegava (marido, dois filhos, um cunhado) a mesa estava posta. Os pratos de louça com o guardanapo enrolado em cima, copos e talheres dispostos corretamente. Alice entrava com o carrinho onde estavam as travessas. Vestia-se agora a rigor. Blusa branca e calça preta, no pescoço um laçarote que sugeria uma gravata de gala. A família aplaudia com exclamações de júbilo, como se a rotina estivesse ocorrendo pela primeira vez.

Alice agradecia com um sorriso, mas este era cada vez mais recolhido. Pois mal acabavam de mastigar, os comensais ligavam o celular e não olhavam para mais nada. As agradáveis conversas de pós-almoço haviam desaparecido.

O marido acabou por notar a situação. Em certa tarde de um tranquilo sábado, falou para a mulher sobre a variedade de atrações oferecidas pelo celular.

“Prefiro a televisão”, reagiu ela. “Mas na televisão você não pode se corresponder com suas amigas, trocar mensagens, fotos.”

Não seria por falta de celular. Na gaveta da cômoda, no quarto, estava um novinho, presente do marido, nunca sequer tocado. De má vontade, foi buscar. Ouviu tudo o que o marido disse, mal disfarçando o desagrado. Mas não guardou o aparelho. Gostou do toque de despertar, uma musiquinha… Logo aprendeu a trocar mensagens, adorou os emojis, aquelas carinhas e corações tão graciosos.

Certo dia, os comensais entram todo satisfeitos na sala de almoço, preparados para as excelências oferecidas pela anfitriã. Dão com Alice de bermuda, sentada no sofá, olhos pregados no celular.

– Tá tudo aí na mesa, é só pegar – lançou, sem tirar os olhos da telinha.

Setembro de 2020

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