A guerra de Bolsonaro contra a Coronavac

Poucos países do mundo têm condições de absorver a tecnologia da indústria farmacêutica e ter produção própria da vacina contra a Covid-19. A esmagadora maioria dependerá da importação para imunizar sua população. O Brasil faz parte do seleto grupo que conta com centros de excelência como a Fundação Fiocruz e o Instituto Butantã. O segundo está envolvido no desenvolvimento de uma vacina – a Coronavac – prestes a estar disponível para a aplicação.

Em qualquer lugar do planeta isso seria motivo de comemoração, com o governo soltando fogos e respaldando a conquista capaz de salvar vidas e garantir a retomada da economia de forma segura.

Menos no Brasil.

Por ciúmes, negacionismo, interesses políticos e fundamentalismo ideológico, o presidente Jair Bolsonaro trava uma guerra sem quartel contra a vacina do laboratório Sinovac. As vítimas são os 200 milhões de brasileiros, condenados a ficar bem atrás dos povos com acesso à vacinação. Os noticiários escancaram diariamente aos nossos olhos essa situação.

Mesmo governantes que no início da pandemia trilharam o caminho da negação se renderam à evidência e começaram a vacinação em seus países. Nesse rol se incluem Boris Johnson na Inglaterra, Manuel Obrador no México e até mesmo Donald Trump nos Estados Unidos.

Enquanto aqui o governo diz não ser possível definir quando vai começar a vacinação e muito menos com qual vacina. Premido pela intimação do Supremo Tribunal Federal, o Ministério da Saúde entregou um “Plano Nacional de Vacinação” cirurgicamente definido pelo ex-ministro Luiz Henrique Mandetta como um corte e cola do plano de imunização da gripe. Os cientistas citados no documento desautorizaram o Ministério por usar indevidamente seus nomes. Na reunião virtual da qual participaram entraram mudos e saíram calados porque seus microfones estavam desligados.

Bolsonaro não vacina e não quer deixar ninguém vacinar. Emparedado pela lógica implacável da ciência, soltou seus pitbulls para cima de São Paulo. O Ministério da Saúde divulgou um vídeo de seu secretário-executivo, coronel Élcio Franco, mais um militar estranho no ninho, vociferando contra o governador João Doria. Já o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, se prestou ao papel de aríete de Bolsonaro, pregando o confisco da vacina produzida pelo Instituto Butantã e acusando Doria de criar um conflito federativo.

A estratégia do governo é eximir-se do fracasso pela via do ataque ao governador paulista. Por ingenuidade ou má fé, muita gente está comprando a versão de que tudo não passa de uma guerra política entre o presidente da República e o governador de São Paulo por causa da disputa presidencial de 2022.

Ela vai além É uma guerra de Bolsonaro contra os acertos de Doria, uma guerra do presidente contra a Coronavac. Desde o início ele se opôs à vacina da Sinovac pelas mesmas razões que se opõe à participação da Huawei no leilão do 5G. Ambas têm o mesmo vício de origem: são chinesas. A Anvisa, cujo comportamento deveria ser exclusivamente técnico, desvia-se de suas funções ao abordar em nota oficial “a potencial influência de questões relacionadas à geopolítica que podem permear as discussões nacionais e decisões estrangeiras relacionadas à vacina da Covid-19”.

Em nome do suposto interesse nacional e para agradar à sua claque reacionária, o presidente também quer vetar a vacina por critérios ideológicos. Só que o grande interesse nacional nestes tempos de pandemia é a defesa da vida dos brasileiros, a quem deveriam estar subordinados todos os outros interesses.

Jair Bolsonaro e João Doria seguiram estratégias diferentes no enfrentamento da pandemia. O presidente sempre foi árduo defensor da “imunização por rebanho”, pautada na idéia de deixar o vírus circular até haver uma percentagem grande de brasileiros com anticorpos. A partir daí adotou uma postura negacionista, sempre estimulando aglomerações, promoveu dança das cadeiras no Ministério da Saúde até ter alguém sempre às ordens como titular da pasta.

Cometeu ainda o erro de apostar em uma só vacina, a de Oxford, desdenhando até mesmo da produzida pela Pfizer. Isto explica por que, enquanto o Canadá tem contratado 10,3 vacinas por habitante, o Brasil tem contratado apenas 1,2 vacina por habitante. Estamos atrás do Peru e de Bangladesh.

Para azar do presidente, o grupo de Oxford ainda estuda se aplicará a vacina concomitantemente com a Sputnik, dos russos, o que atrasará ainda mais o calendário de imunização no Brasil.

O governador de São Paulo foi noutra direção. Enquanto Bolsonaro torpedeava o isolamento social e o uso de máscara, Doria seguiu o bom senso. Estrategicamente assinou há meses um convênio com a Sinovac e dotou o Instituto Butantã de uma fábrica para a produção da Coronavac, com capacidade de produzir diariamente um milhão de doses e de operar 24 horas por dia.

Agora colhe os louros de sua estratégia, enquanto Bolsonaro sente-se encurralado. A cada dia aumenta a fila de prefeitos no Butantã para assinar convênios. Já são 913 prefeituras e 13 estados. Doria será condenado por isso?

Virgens de bordel dão ênfase ao fato de o governador paulista poder se beneficiar politicamente, de olho em 2022. Como perguntou Carlos Andreazza em seu necessário artigo “Pazuellização”: “E daí?”

Ou Bolsonaro não está se beneficiando do auxílio emergencial? Isso é do jogo, é legítimo.

Deveríamos nos preocupar mais com o fato de o Brasil estar se transformando em uma imensa Bolsolândia, onde a Covid é uma gripezinha, a pandemia está no finalzinho, quem usa máscara é maricas, a morte de 180 mil pessoas é coisa da vida e vacina chinesa vai inocular nos brasileiros o vírus do comunismo. Ah, sim, e as pessoas para serem vacinadas terão de assinar um termo de responsabilidade.Tenham dó.

Que venha a Coronavac!

P.S.: Como a vida fala mais alto, finalmente o governo rendeu-se à realidade, incorporando, na manhã desta quarta-feira, a Coronavac ao Plano Nacional de Vacinação. Segundo o ministro Pazuello, isto está pacificado e o que passou, passou, e é hora de olhar para a frente. Menos mal. O fim desta etapa insana levará à salvação de milhares de vidas brasileiras.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 16/12/2020. 

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