A América do Sul voltou a ser uma área de alta instabilidade, se é que em algum momento deixou de ser. O Chile – pais mais estável, de crescimento econômico sustentado e avanços sociais importantes, como a drástica redução da pobreza – vive dias de conflagração, com 15 mortos, toque de recolher e forças armadas nas ruas.
Há poucos dias o epicentro da convulsão sul-americana estava no Peru e em seguida no Equador. A Bolívia se candidata a entrar no vendaval, com protestos da população diante da forte suspeita de que Evo Morales se reelegeu por obra da “mano de Dios”.
Nem mesmo a Frente Ampla de Pepe Mujica, no poder há 15 anos no Uruguai, está imune aos ventos da insatisfação. É grande a possibilidade de ter de enfrentar um segundo turno eleitoral, no qual o Partido Nacional, de centro-direita, disputaria na condição de favorito.
Na Argentina os peronistas estão a um passo de voltar ao poder, turbinados pela insatisfação generalizada com o desempenho econômico do governo Mauricio Macri. Some-se ao quadro a Venezuela, cujo esgarçamento dispensa maiores explicações.
Diante do furacão que reduz a pó sua popularidade, governantes culpam hipotéticos inimigos – externos ou internos – por problemas em seus países. Nisso, esquerda e direita se equivalem. Para Nicolás Maduro a culpa do fracasso de seu governo é do Tio Sam. Já para Sebastian Piñera o caos no qual o Chile mergulhou foi provocado por “poderosos inimigos”, enquanto Lenin Moreno, presidente do Equador, joga a culpa na “conspiração” do seu antecessor, Rafael Correa.
Sempre é mais fácil, para quem está no poder, terceirizar as responsabilidades no lugar de ir às causas das crises. Já vimos esse filme no Brasil, com Dilma Rousseff e Lula atribuindo o fracasso dos anos do lulo-petismo à conspiração das elites em conluio com forças estrangeiras. Jair Bolsonaro não inova quando elege inimigos internos e externos interessados em derrubá-lo.
Apesar de haver especificidades em cada nação, há um traço em comum entre os países da região que estão com suas veias expostas. Os chilenos viralizaram nas redes sociais a imagem de um iceberg que explica muito bem o que está acontecendo em seu país. E que serve para todos.
Na ponta do iceberg aparece a insatisfação com o aumento de quatro centavos de dólar na passagem do metrô, na hora do pico. Mas em sua base surgem os serviços públicos de baixíssima qualidade na educação, saúde, segurança, a onda de corrupção, a descrença com os políticos e até o que consideram aposentadoria indigna. Trata-se do mesmo filme que vimos em 2013.
A tragédia do continente consiste em que modelos de diversos matizes não conseguiram reduzir a desigualdade social. Tivemos o rotundo fracasso do populismo de esquerda na Venezuela, na Argentina dos Kirchner e no Brasil da dupla Lula-Dilma: continuamos sem igualdade social. Também no Chile que agora expõe à luz do sol os limites do modelo neoliberal adotado ainda na ditadura de Pinochet e que, na essência, manteve-se intocado nos 26 anos de governos de centro-esquerda e nos seis anos de Sebastian Piñera.
Em certo sentido, esta questão tem encontrado respostas disruptivas em escala planetária. Foi assim com a eleição de Donald Trump nos EUA. E também com a vaga nacional-populista que varreu a Europa e que começa a ser revertida com os resultados das eleições em Portugal e na Itália.
O peculiar de “nuestra América” é que a desigualdade é um traço permanente da História, uma herança do período colonial. Por isso mesmo é mais intensa, perversa e gera ondas que desaguam em caos. Sejam os de ruas, sejam os de alternativas populistas e demagógicas, que só aprofundam o problema.
Ainda não encontramos o caminho capaz de combinar economia de mercado com crescimento sustentado, democracia estável e igualdade social.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 23/10/2019.
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