O seu bigode tinha todos os traços dos ideais republicanos: dois arcos reflexivos, pontas enroladas a apontar o céu, enfim, uma andorinha de asas abertas a decorar o lábio superior. Este é o bigode de Paul Deschanel e o voto dos eleitores fez desse bigode e de Deschanel o Presidente de França por sete meses e poucos dias.
Sete meses nem é bem uma presidência, é mais um dedo mindinho. Mas é o escarrado destino de quem, aos três meses de presidência, protagonizou um acto de indubitável e inultrapassável celebridade: Paul Deschanel tombou de um comboio em andamento. De pijama.
Deschanel visitava a França profunda. Era Maio, o maduro Maio, e o ronronante comboio de 1920 deixou Lyon em direcção a Montbrison. Jantado, o presidente vai deitar-se, pedindo ao fiel secretário que o acorde às sete e meia da manhã. Pijama, soporífero engolido, enfia-se na cama. A cabine é pequena e abafa. Deschanel, incomodado, tenta abrir a janela de guilhotinas. A de baixo cede, mas a de cima resiste. Deschanel atira-lhe com o peso presidencial do ombro, a janela escancara-se e Deschanel mergulha no escuro da noite, mordendo a poeira das obras em curso na ferrovia. A uns 30 km à hora, o ignorante comboio segue, alheio ao patético tombo presidencial. Um tombo do Entroncamento.
Deschanels levanta-se, fios de sangue a desenharem-se-lhe no pó do rosto, o pijama num trapo. Lá vai ele, trôpego, uma meia hora de escuridão, nem um balido de ovelha ou mugido de vaca. Acha-o um ferroviário de lanterna que inspecciona a linha. “Sou o Presidente da República!” Aquele não era o tempo das selfies de Marcelo e o ferroviário já tinha visto bêbados em melhor estado: leva o bêbado, talvez um doido manso fugido do hospício, a casa do guarda-barreira.
“Sou o Presidente da República!” O guarda-barreira e a mulher olham-no como o miúdo do filme de Spielberg olhou para o ET e tratam o desgraçado com misericórdia cristã. A mulher dirá, depois, que logo viu, pelos pezinhos mimosos e as mãos manicurizadas, ter deitado na cama um cavalheiro. Chamam o médico. Fiel leitor do Petit Journal, o médico reconheceu o presidente.
O telégrafo dispara mensagens e, num dos apeadeiros, avisam o comboio de que caiu alguém à via. Contam os passageiros, estão todos. Ninguém se atreve a bater à porta do exíguo camarote presidencial. É o que faz, às sete e meia, o fiel secretário. O camarote está vazio: não há memória de que comboio algum tenha experimentado tamanha consternação.
Vejam bem, é verdade que não há só gaivotas em terra, mas tombar um presidente da república, de pijama, da janela de um comboio, é um intolerável facto político, mesmo sendo este presidente um fanático do cómico Buster Keaton, a que os nossos avós chamaram Pamplinas, e que de um filme com um comboio, o Pamplinas Maquinista, fez uma obra-prima. Um riso sufocado percorreu a França: um antepassado gaulês de Quim Barreiros fez-lhe uma canção; em Le Rire vários Antoines pespegaram-lhe com cartoons que ainda hoje fazem rir Trump. Nesse tempo de tantas fake-news, disse-se que o presidente mergulhava nos lagos do Eliseu, nadando com os patos e que assinava os documentos com o nome de Napoleão ou Vercingétorix, o que, não tivesse sido mentira, autorizaria Merkel a assinar como Bertolt Brecht, Costa como Vasco da Gama, Trump como Touro Sentado.
A depressão arruinou Paul Deschanel. Demitiu-se sem cumprir o ideal que Victor Hugo lhe auspiciou e para que a educação do pai o preparara, devolvendo-lhe sem resposta as cartas que tivessem erros ortográficos.
Da Página Negra, texto publicado na coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.