Talvez Umberto Eco venha almoçar

O que é que separa cada um de nós, condoídos mortais, de Umberto Eco? Vejamos, juraria que Eco ia gostar de comer uma cabeça de garoupa grelhada no Verde Gaio, como a que os meus amigos Manolo Bello, Francisco Balsemão e Pedro Norton partilharam comigo com a promessa de repetirmos ainda por cumprir. Umberto Eco havia de se lamber e relamber com o fondue de mariscos e peixes do Go Juu, ao lado do editor amigo Guilherme Valente ou do mais cinéfilos dos cirurgiões, o meu camarada António Setúbal.

Eis o que, a nós, comuns mortais, apreciadores de grelhados e fondues, nos separa de Eco: o filme Casablanca. Disse ele, ajuramentado e exímio: “Sejam quais forem os parâmetros de análise crítica, Casablanca é um filme medíocre.”

Umberto não gosta de Casablanca. Ora nós, comuns mortais, agarrando Casablanca pelo laço de Bogart, pelo chapéu de Ingrid Bergman ou pela cauda, se ele tivesse cauda, do piano do fabuloso Sam, adoramos Casablanca, filme que os argumentistas americanos elegeram, há tempos, como o mais bem escrito filme de sempre.

Ia perguntar se ainda se lembram de Casablanca e peço desculpa se vos ofendi. Toda a gente se lembra da maravilhosa espelunca que é o bar de Bogart, o Rick’s. Naqueles cento e tal metros quadrados vive um mundo. Todos têm uma história suspensa, todos querem comprar ou vender alguma coisa. E todos têm a palavra “não” na ponta da língua. Ou respondem torto. Não há “sins” no começo de Casablanca. A contradição é unânime e é muita gente a dizer que não, porque toda a gente fala, o chefe do bar, as personagens secundárias em busca de vistos, mesmo o pianista, os alemães.

É esse conflito de mil vozes e de mil pequeninas vontades particulares, a dos escroques e carteiristas, a dos polícias franceses, dos militares nazis, dos refugiados, que gera em nós, espectadores comuns que apreciamos peixe grelhado e fondue de marisco, uma euforia de que nunca mais nos livramos e de nunca, nos dias da nossa vida, quereremos livrar-nos.

Mas olhem, não sei se atraído pelo aroma das ameijoas ao vapor com pargo grelhado em molho de saké, Umberto Eco quer conversa. Sem deixar de fincar o pé na mediocridade, e servindo-se de uma generosa dose de napolitano puro acaso al aglio e olio, Eco já corrige o tiro e diz que Casablanca está carregado de arquétipos, esse molho que liga tão bem os velhos e recozidos mitos e o sápido arroz com feijão de Ilíadas, Odisseias e Bíblias. Esses arquétipos, diz ele, fazem fluir uma narrativa poderosa em estado puro. Ou seja, sem nos doer nada e em estado de exabundante fruição, nós, espectadores comuns, vamos dos braços de Borgart para os de Ingrid Bergman, derramamo-nos pelo chão ao piano de Dooley Wilson, subimos ao céu a cantar “A Marselhesa” e disparamos sem piedade no bucho do execrável nazi.

Umberto tem pena que a Arte, uma velha senhora que já não é dada a prazeres de boca, não tenha vindo disciplinar a orgia que acabo de descrever. Eu canto e louvo essa falta de comparência da reputada senhora e agradeço à cambada de artesãos medievais que edificou Casablanca, do realizador Michael Curtiz ao produtor Hal B. Wallis, o prodígio de tanta indisciplina. Só assim Casablanca poderia ter atingido essa “profundidade homérica” que o regalado Eco afinal reconhece no filme e que, diz ele, e eu repito à minha maneira, é um fenómeno digno de espanto e reverência. Confesso, tenho um fraquinho por Eco e tenho a certeza de que teríamos cantado juntos “A Marselhesa”, se tivéssemos visto Casablanca na mesma sala.

Da Página Negra, texto publicado na coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.

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