Orgulhosamente só

O japonês Hirō Onoda tinha a mesma impotência da ideia fixa de um António de Oliveira Salazar, de um Álvaro Barreirinhas Cunhal. A impotência da férrea ideia única converte um homem num Hércules, num imbatível Aquiles.

Com 22 anos, Onoda desembarcou em Lubang, uma ilha das Filipinas. Se viu, não quis saber da belíssima e fina areia branca das praias de Lubang, que 1944 não era ano de turismo. Comando japonês, o tenente Onoda sabia tudo de espionagem, técnicas de guerrilha, sabotagem, propaganda e artes marciais. Ao pé dele, Bruce Lee era um menino de coro e colo.

Eis ao que vinha: sabotar o cais e a pista de aterragem que os americanos iriam usar para invadir a ilha. O seu comandante, o major Yoshimi Taniguchi, como Deus a Moisés, deu-lhe dois estritos mandamentos: em caso algum se poderia render; não podia, mesmo em desespero, suicidar-se.

Fazendo breve a longa e longínqua história: os americanos tomaram a ilha e Onoda, com três homens, internou-se na selva, sabotando, atacando e matando com a devoção e disciplina de um santo, o inquebrantável espírito de um mártir.

A imparável, cega e surda História pôs fim à guerra, em 45. O imperador rendeu-se a John Wayne e aos seus ingénuos e cândidos rapazes americanos. Mas na selva de Lubang, o fortuito Onoda continuava aos tiros. Bem deixaram os americanos panfletos anunciando o fim da luta e apelando à rendição. Com uns olhos de Álvaro Cunhal, o sabotador Onoda detectou em cada linha do panfleto uma manobra da reacção.

Em 49, um dos soldados, Yūichi Akatsu, isola-se e tenta acções individuais, acabando a render-se aos filipinos. É, para Onoda, a prova de que a guerra continuava. Caíram na selva folhetos assinados pelo lendário general Yamashita, reconhecendo a rendição japonesa. Onoda viu neles o dedo insidioso da quinta-coluna. Olhou para os seus dois homens e, num lampejo de vaidosa humildade salazarista, declarou que estavam orgulhosamente sós. Em 52, o governo japonês espalha pelas florestas de Lubang cartas e fotografias dos familiares dos três soldados. Em cada linha, a treinada inteligência de Onoda descobre falsidades e fake news.

Em 54, o cabo Shōichi Shimada é abatido em combate. São agora apenas dois, comem mangas, cocos, algum animal morto. E continuam em guerra contra o mundo. Em 1972, 27 anos depois do fim da guerra, ao tentarem queimar a colheita de arroz de uma aldeia, o soldado de primeira classe Kinshichi Kozuka é morto pelas milícias camponesas. Inabalável, Onoda prossegue a luta sozinho: o Império japonês não se rende!

Um hippie marado, Norio Suzuki, decide correr o mundo em busca, e por esta ordem, do tenente Onoda, do último panda e do abominável homem das neves. Infiltra-se na selva de Lubang e encontra-o. Onoda reconhece, por fim, o que Salazar ou Cunhal nunca poderiam reconhecer, que criara um mundo de ilusão, de autismo. Mas só aceita render-se se o seu comandante cumprir o que lhe prometeu 49 anos antes: “Passem dois ou dez anos, voltarei a contactar contigo.”

Já civil, o comandante Taniguchi fardou-se de novo e veio libertar Onoda da sua missão. A 9 de Março de 74, o tenente entregou uma espada, a espingarda Arisaka 99, munições e granadas de mão. Sozinho, combatera 29 anos, matando 30 pessoas, que presumira inimigos. Entregou até o punhal que a mãe lhe dera, para fazer hara-kiri se caísse nas mãos do bárbaro americano.

Regressou com 51 anos ao Japão. Trazia uma saúde de ferro e, esfregados diariamente com fibras vegetais, uns dentes tão brancos como a fina areia de Lubang.

Da Página Negra, texto publicado na coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.

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