Se o gordinho Arbuckle não tivesse violado a inocente Virgina Rappe, se o realizador e actor William Desmond Taylor não tivesse sido assassinado com um tiro nas costas por sabe-se lá quem, talvez o cinema americano nunca tivesse adormecido à sombra do Código Hays. Escândalos, tiros, drogas e violações atraíram as moscas da Imprensa cor-de-rosa e os mil gritos das ligas de decência sobre a Hollywood dos anos 20.
Às moscas e gritos seguiram-se as multas. Em cada estado, dependendo das boquinhas políticas e religiosas que degustavam os filmes, caíam sobre os estúdios que os produziam multas por ofensas à moral que deixavam os Mários Centenos que se ocupavam das finanças da Warner, da Metro-Goldwyn-Mayer ou da Paramount, em estado cataléptico. E eis como nasceu o Código Hays, acto de auto-regulação da indústria do cinema, pelo qual os estúdios de cinema fixaram uma lista de “Don’ts and Be Careful” elencando o que não se podia ou se devia ter cuidado a mostrar num filme. Com essa manobra, o cinema furtou-se à intervenção do Estado federal, bem como às censuras dos estados que constituem o patchwork a que chamamos América.
Um presbiteriano, que presidia à associação dos estúdios, Will H. Hays, acabou por ver o seu nome associado a esse Motion Picture Production Code, que teve uma ou duas mãozinhas jesuíticas na fabricação. Dois padres católicos, em relativo segredo com os patrões judeus da indústria, escreveram o famoso código com um imbatível e virginal ideal de pureza: “fazer os espectadores sentirem-se seguros de que o mal está errado e o bem está certo”. Logo em 1931, mal esses propósitos foram conhecidos, o contundente humor americano baixou as calças ao Código, deixando-lhe as cuecas à mostra ao defini-lo com esta sintética fórmula assassina: “O Código regula um negócio de judeus que vende a teologia católica à América protestante.”
Nos anos 30, 40 e 50 do século XX, o código Hays, além do uso profano da palavra “Deus” ou “inferno”, proibia as cenas de nudez explícita ou mesmo em silhueta, as cenas de tráfico de drogas e as cenas de que se pudesse inferir perversão sexual, o que então abrangia a homossexualidade. Com extremo cuidado, não caindo na vulgaridade ou mau gosto, poderiam filmar-se as cenas violentas e com uso de armas, as cenas de contrabando ou de violação. Os beijos não deviam incluir essa coisa de as pessoas meterem a língua na boca umas das outras; nos assaltos a bancos ou comboios, roubos de cofres não deveriam mostrar-se as técnicas, evitando que o espectador mais “moron”, ou seja, o idiota chapado, fosse tentado a repetir a proeza. Não se deveriam mostrar cenas de adultério, aborto, amores inter-raciais e, ainda menos, mostrar como matar alguém sem ser apanhado. Cenas de higiene sexual nem pensar, interditando assim Hollywood à lavagem da passarinha.
Em 1943, um tremor de terra abalou o Código, quando, com a mesma generosidade dos euros de Mario Draghi no Banco Central Europeu, a estreante Jane Russell ofereceu o seu prodigioso peito aos dois amantes que tinha em The Outlaw, western realizado e pago pelo ultra-milionário Howard Hughes.
Hughes inclinou, dobrou, deitou e decotou Jane de mil maneiras. “Nunca vi nada tão inaceitável como as imagens do peito desta mulher”, gritou o director do Código. Não deram o selo ao filme, mas Hughes estreou-o na mesma. “Veja as duas grandes razões para Jane Russell se tornar uma estrela” foi um dos slogans publicitários de The Outlaw. Multidões encheram as salas que se atreveram a exibi-lo.
Da Página Negra, texto publicado na coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.