A música de Michel Legrand, para mim, está associada a duas das melhores coisas da vida: a beleza das mulheres e a deliciosa dor que é a gente se apaixonar perdidamente.
Michel Legrand compôs as trilhas sonoras de mais de 150 filmes, gravou cerca de 100 discos de jazz, de música clássica e popular. Ganhou 3 Oscars da Academia de Hollywood, fora outras 6 indicações. É, creio, o compositor de trilhas francês de maior carreira internacional.
Depois que fiz essa afirmação, vi que Le Monde a endossa. Começa assim o texto do site do grande jornal:
“Ele era, depois da morte em 2009 de Maurice Jarre, o mais célebre compositor francês de música de filmes em atividade no mundo. Arranjador, orquestrador, maestro, pianista e cantor, Michel Legrand morreu no sábado 26 de janeiro aos 86 anos, segundo seu assessor de imprensa, após uma vida inteiramente dedicada à música, uma musa a quem ele serviu com curiosidade e gulodice, explorando os territórios da sétima arte e do jazz, da música de variedades e do easy listening – essa música dita ambiental, muito mais fácil de se ouvir do que de se conceber”.
Filhos da mãe, os franceses. Como escrevem bem! “Une muse qu’il aura servie avec curiosité et gourmandise.” “Cette musique dite d’ambiance, beaucoup plus facile à écouter qu’à concevoir.”
Chama-se Bruno Lesprit o camarada que escreveu o obituário de Legrand para o Monde – e, diacho, é impossível não citar mais um trecho do belo texto dele. Esse Bruno Lesprit diz no segundo parágrafo que o compositor recusava todo tpo de hierarquia entre os gêneros musicais, e passou por todos. E prossegue:
“Com suas restrições, que para ele não eram um incômodo, a música para o cinema era o vetor ideal para que se exprimisse o talento desse atravessador de muros. Graças a ela, ele pôde se lançar a todas as experiências: barroco (a música de câmara para dois pianos cheia de beleza misteriosa para O Mensageiro, de Joseph Losey, em 1970) e romantismo, valsa popular e be-bop, percussões latinas e violinos ciganos, música pop e canções românticas para crooners. Com, por princípio, a decisão de jamais sacrificar a melodia, essa exigente amante à qual jurou fidelidade.”
Aaaah…
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Eu tinha 16 anos quando me apaixonei perdidamente por Michel Legrand, Jacques Demy e Catherine Deneuve, não sei em que ordem, mas isso é o que menos importa. Foi num cinema que faz décadas não existe mais, o St. Tropez, que ficava na Rua Augusta, logo abaixo da Peixoto Gomide, se não me engano. Era fevereiro de 1966, e eu estava em São Paulo apenas de passagem; meus irmãos mais velhos haviam decidido que eu teria que mudar de Belo Horizonte para Curitiba. E em Belo Horizonte, além de todos os amigos e amigas que tinha feito na vida, estava também a menina por quem eu estava absolutamente apaixonado – os adolescentes sempre estão absolutamente apaixonados.
E então, aos 16 anos de idade, indo para o que considerava meu exílio, para longe da menina amada, vi no Cine St. Tropez a história triste de Guy e Geneviève em Les Parapluies de Cherbourg – os dois jovens que vivem o Grande Amor e de repente são obrigados a se separar, quando ele é convocado para servir o exército e ir lutar na guerra da Argélia.
Saí do cinema ao mesmo tempo extasiado com tanta beleza e chocado com a história e a moral da história criada por Demy e musicada por Legrand: a certeza de que tudo passa, tudo acaba, até mesmo o Grande Amor. Os adolescentes sempre acham que nada passa, nada acaba, sobretudo o Grande Amor.
Pela primeira vez na vida, vou ter a coragem de reproduzir um trecho do diário do Sérgio Vaz adolescente. Bem, não é um texto meu, é daquele garoto, daquela outra encadernação:
“Vi ontem ‘Les Parapluies de Cherbourg’. O filme da música e da cor. Ou o filme do desencontro. ‘La Partie’, o amor vai embora. ‘L’absence’, o amor queima, arde, estrebucha e morre. ‘Le Retour’, o sujeito volta, casa com outra, a fulana casa com outro, e no fim do filme se encontram. Sem mais nada. Sem o coração bater forte, sem chama, sem luar, sem eucaliptos. Obrigado, Jacques Demy, por mostrar que a tristeza é alegre. Obrigado pelas duas horas de música e de felicidade e de cinema. Obrigado, seu filho da puta, por me fazer perder a esperança no retorno.”
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Há muito tempo não revejo Parapluies. Deu uma vontade enorme de rever – até porque achei no YouTube, para pôr no Facebook, a sequência em que Geneviève e Guy cantam o tema principal que Legrand compôs para o filme – o primeiro filme inteiramente cantado da História do cinema, é bom lembrar. A sequência começa com os dois no bar, Geneviève-Catherine Deneuve e Guy-Nino Castelnuovo, os rostos lindos dos dois, e Geneviève cantando, com a voz de Danielle Licari, a melodia linda: “Mon amour, je t’attendrai toute ma vie. / Je ne penserai qu’à toi. / Reste, ne pars pas, je t’en supplie. / Reste, mon amour, ce n’est pas encore l’heure. / Je m’éloigne de toi, ne me regarde pas. / Je ne peux pas, je ne peux pas, je ne peux pas. / Mon amour. / Je t’aime, je t’aime.”
É com a mesma melodia maravilhosa que, perto do final daqueles 91 minutos mágicos de grande cinema, que Geneviève-Catherine Deneuve diz para a filhinha dela com Guy, que foi adotada pelo homem gentil que se casou com ela, Roland Cassard-Marc Michel, para ela parar de buzinar: “Le klaxon n’est pas un jeu”, ela canta, no momento em que o homem do posto de gasolina chega para atendê-la – e os dois enamorados que haviam vivido o Grande Amor se revêem pela primeira vez, e os corações já não batem forte, não há chama, não há luar, não há hinos retumbando.
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Demy, Legrand e Catherine Deneuve voltariam a se reunir em 1967, três anos depois de Parapluies, para fazer Duas Garotas Românticas/Les Demoiselles de Rochefort. Foi a única vez em que trabalharam juntas como protagonistas as duas filhas dos atores Maurice Dorléac e Renée Deneuve – Catherine e Françoise Dorléac. Vi o filme pela primeira vez no Cine Metrópole, em maio de 1969, meu segundo ano em São Paulo, a cidade que escolhi para viver – e vejo agora no meu segundo caderno de cinema que assisti a Les Demoiselles depois de São Paulo Sociedade Anônima e Terra em Transe, e logo antes de La Guerre est Finie e Le Bonheur. Person, Gláuber, Resnais, Varda. Uau, como o garoto via filme bom um depois do outro, meu Deus.
Aquela no Cine Metrópole foi a primeira de muitas. Em 2015 revi mais uma vez, para escrever sobre o filme para o 50 Anos de Filmes.
Catherine Deneuve. Françoise Dorléac. Faye Dunaway no auge da beleza acachapante em The Thomas Crown Affair, de 1968. Rene Russo no filme em que ela está mais bela, a refilmagem de 1999 de The Thomas Crown Affair. Jennifer O’Neill em Houve uma Vez um Verão/Summer of ’42 – meu Deus, como está linda Jennifer O’Neill ao som daquela melodia maravilhosa que Legrand criou para o filme de Robert Mulligan!
São coisas que combinam – as melodias de Michel Legrand e a beleza das mulheres mais belas. Sont de choses que vont três bien ensemble, diria Sir James Paul.
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Como tanta gente das artes francesas – Georges Moustaki, Francis Lai, Pierre Barrouh, Brigitte Bardot, Vincent Cassel, para dar uns poucos exemplos –, Legrand era um apaixonado pelo Brasil e pela música brasileira. Fã absoluto de Tom Jobim – tudo bem, mas quem não é? Fã apaixonado de Luiz Eça – e aí ele se mostrava um connoisseur, porque não é todo mundo que sabe da beleza da arte de Luiz Eça.
Numa de suas várias passagens pelo Brasil, Legrand gravou o disco Michel Legrand Luiz Eça, em que foi acompanhado por Francis Hime, Ivan Lin, Jacques Morelebaum. Márioi Adnet, Zé Nogueira.
Jazz, bossa nova, MPB, pop – Legrand traçava tudo. Em 2000, a soprano Jessye Norman fez o álbum Jessye Norman sings Michel Legrand, acompanhada ao piano pelo próprio compositor. Entre as 15 faixas – algumas em Francês, algumas em Inglês – estão “What are you doing the rest of your life”, essa canção que já é linda no próprio título, “Les Parapluies de Cherbourg”, uma junção de trechos das letras sobre o tema principal que ficou conhecido em inglês como “I Will Wait For You”, e “The Windmills of Your Mind”.
“The Windmills of Your Mind” é a versão para o inglês de “Les Moulins de Mon Coeur”, escrita para The Thomas Crown Affair 1968 – e essa canção, além de belíssima, das mais belas que há, é também algo raro, quase inédito: uma música que tem uma versão em Inglês tão bela quanto o poema original escrito em Francês. E aí não consigo me impedir de transcrever aqui a beleza das duas letras, a original, de autoria de Eddy Marnay, e a vertida para outra língua, pelo casal Marilyn & Alan Bergman, letristas de primeiríssima linha.
Les Moulins de Mon Coeur | The Windmills of Your Mind |
Un ballon de carnaval
Comme le chemin de ronde Que font sans cesse les heures Le voyage autour du monde D´un tournesol dans sa fleur Tu fais tourner de ton nom Tous les moulins de mon cœur
Comme un écheveau de laine
Entre les mains d´un enfant Ou les mots d´une rengaine Pris dans les harpes du vent Comme un tourbillon de neige
Comme un vol de goélands Sur des forêts de Norvège Sur des moutons d´océan Comme le chemin de ronde Que font sans cesse les heures Le voyage autour du monde D´un tournesol dans sa fleur Tu fais tourner de ton nom Tous les moulins de mon cœur
Ce jour-là près de la source Dieu sait ce que tu m´as dit Mais l´été finit sa course L´oiseau tomba de son nid
Et voila que sur le sable Nos pas s´effacent déjà Et je suis seul à la table Qui résonne sous mes doigts Comme un tambourin qui pleure Sous les gouttes de la pluie Comme les chansons qui meurent Aussitôt qu´on les oublie Et les feuilles de l´automne Rencontre des ciels moins bleus Et ton absence leur donne La couleur de tes cheveux
Une pierre que l´on jette Dans l´eau vive d´un ruisseau Et qui laisse derrière elle Des milliers de ronds dans l´eau Au vent des quatre saisons
Tu fais tourner de ton nom Tous les moulins de mon cœur |
Like a circle in a spiral
Like a wheel within a wheel Never ending or beginning On an ever spinning reel Like a snowball down a mountain Or a carnival balloon Like a carousel that’s turning Running rings around the moon
Like a clock whose hands are sweeping Past the minutes of it’s face And the world is like an apple Whirling silently in space Like the circles that you find In the windmills of your mind !
Like a tunnel that you follow To a tunnel of it’s own Down a hollow to a cavern Where the sun has never shone, Like a door that keeps revolving In a half forgotten dream, Or the ripples from a pebble Someone tosses in a stream
Like a clock whose hands are sweeping ….
Keys that jingle in your pocket Words that jangle in your head Why did summer go so quickly ? Was it something that you said ? Lovers walk along a shore And leave their footprints in the sand
Is the sound of distant drumming Just the fingers of your hand ? Pictures hanging in a hallway And the fragment of this song Half remembered names and faces But to whom do they belong ?
He: when you knew That it was over You were suddenly aware That the autumn leaves were turning To the color Of her hair !
She: when you knew That it was over In the autumn of goodbyes For a moment You could not recall the color Of his eyes !
Like a circle in a spiral Like a wheel within a wheel Never ending or beginning On an ever spinning reel
As the images unwind Like the circles That you find In the windmills of your mind ! |
O belo texto de Bruno Lesprit no Monde termina dizendo que, nos últimos anos, Michel Legrand se tornou infiel à música de cinema, e andou tendo um caso com o teatro musical, compondo as canções de uma comédia musical. Aventurou-se também pelas letras, publicando um primeiro volume de memórias, Rien n’est Grave Dans les Aigus – nada é grave dentro dos agudos.
Perdidamente apaixonado pelas paixões, casou-se aos 82 anos de idade com uma mulher que havia amado na juventude – a atriz Macha Méril, outra que o adolescente Sérgio Vaz amou de paixão.
Que criatura fantástica, esse Michel Legrand.
Tenho a absoluta certeza de que os anjos ficaram especialmente alegres, hoje, ao recebê-lo.
Aqui vão uns poucos clipes da música maior desse senhor maior:
Natalie Dessay e Michel Legrand, “Les moulins de mon cœur”.
O tema de Houve uma Vez um Verão/Summer of ’42.
A sequência do início do adeus de Les Parapluies de Cherbourg.
26/1/2018
Garanto que Michel Legrand, sensibilidade, talento e amor ao belo, ficaria deslumbrado com teu artigo para despedir-se dele.
Emocionante.
MH
Uau, Maria Helena! Um elogio assim – e ainda mais vindo de você – é emocionante!
Muito obrigado! Um grande abraço.
Sérgio