Por ignorância ou puro ódio, de caso pensado ou não, o bolsonarismo encarnou de vez as vestes de inimigo-mor das artes, da cultura. E parece adorar o papel. Desdenha do melhor produto brasileiro e, mais grave, fere a identidade nacional, indissociável da cultura. Um vale tudo de baixíssimo nível para destruir uma imaginária hegemonia ideológica de esquerda nas artes.
Cultura não é e nunca foi de direita nem de esquerda. Não pertence a governos.
Mandantes autoritários, totalitários e toda sorte de ditaduras em várias partes do mundo sempre tentam instrumentalizar as manifestações culturais. Mesmo quando têm algum sucesso, ele é passageiro. Não raro colhe-se o resultado inverso.
Nos Estados Unidos, a caça aos comunistas promovida nos anos 1950 pelo macarthismo acabou por transformar em heróis quase a totalidade dos artistas banidos, menos de uma década depois. Por aqui, os censores da ditadura militar perseguiram e tentaram calar muitos, mas, ao contrário de impedi-los, jogaram luzes na MPB, na música de protesto, no cinema e no teatro, nas letras e nas artes plásticas. No final, o enterro do regime se deu com milhões nas ruas comungando política e música em gigantescos showmícios.
Ainda assim, não aprendem.
Sem poder utilizar os instrumentos clássicos da censura, o governo do presidente Jair Bolsonaro tenta inibir o setor pela asfixia. Reduziu a pó a força da cultura dentro da administração federal, escanteando-a para o Ministério do Turismo. Cortou incentivos e possibilidades de captação de financiamento, tentou excluir artistas do cadastro de microempreendedores individuais, busca impor isenções de cobrança de direitos autorais contrariando a lógica do tocou em público tem de pagar ao artista. Esculacha o cinema brasileiro e ícones da arte nacional como os compositores Chico Buarque (declaradamente de esquerda, mas e daí?), Caetano Velloso, Gilberto Gil, Martinho da Vila e a premiadíssima atriz Fernanda Montenegro.
Prefere que a cultura seja gerenciada por incultos.
É o que se deduz diante das sandices expostas pelo novo presidente da Funarte (Fundação Nacional das Artes), Dante Montovani, para quem o rock é algo satânico – “que ativa a droga que ativa o sexo, que ativa a indústria do aborto” – e os Beatles e Elvis Presley agentes soviéticos contra a cultura ocidental. Nem o melhor humorista conseguiria reunir tanta asneira em uma tacada só.
Para além da piada reside a visão torta de substituir a cultura, que, de acordo com os discípulos do guia e mestre Olavo de Carvalho, estaria dominada pelo comunismo. A ideia foi exposta com todas as letras na Unesco pelo secretário de Cultura do governo, Roberto Alvim. “Vamos criar uma nova geração de artistas”, disse, para o estarrecimento da plateia internacional, farta de saber que governo algum “cria” arte. Por mais que tente.
Sem poder utilizar os instrumentos clássicos das ditaduras para calar as artes, o movimento anti-cultura do bolsonarismo se sustenta no velho e enferrujado argumento da defesa da moral e da família. Como se o país fosse habitado por órfãos que necessitam de um papai para dizer o que é certo ou errado, o que é bom ou ruim.
Uma cartilha que inibe manifestações culturais de negros e LGBTs, com produções suspensas pela Caixa Cultural. Que condena o Carnaval, maior festa popular do país que o presidente Bolsonaro só conseguiu enxergar sob a ótica do “golden shower”. Que produz 80 filmes por ano, boa parte deles respeitadíssimos aqui e lá fora, agora com financiamento mambembe porque o presidente exige “filtros” que impeçam obras como a “pornográfica Bruna Surfistinha”, baseada em uma história real de superação, que ganhou as telas em 2011.
Por puro ódio ou ignorância, bolsonaristas estão convencidos de que cultura é coisa da esquerda. Dessa forma jogam na oposição todos os que amam as artes, inclusive os que votaram no capitão na ânsia de se verem longe do PT, que, na outra ponta, também manipula as artes em seu favor.
A tentativa de substituir uma ideologia por outra é prática corrente desde os primórdios. Bilhares de livros foram incinerados em praças públicas na China da Dinastia Qin, 200 anos antes da Era Cristã, na Alemanha nazista (como mostra a foto acima) e nos primeiros tempos da revolução soviética. Tentativas de apagar registros e reescrever a História. Na era digital, direita e esquerda tentam fazê-lo queimando reputações.
Em meio de tanta insanidade, faz bem à alma a voz de sensatez do ator octogenário Tarcísio Meira, em entrevista às páginas amarelas de Veja: “Ando com as duas pernas. Não posso caminhar com a direita sem a ajuda da esquerda, assim como não posso caminhar com a esquerda sem a ajuda da direita. O que estou vendo é que uma perna está brigando com a outra, e esse indivíduo, o Brasil, é capaz de soçobrar. Ora, apenas o saci anda com uma perna só, e, mesmo assim, de vez em quando pega carona com o vento”.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 8/12/2019.