É que nem Deus aceitava. Francisco lembra-se. Humilde e cristão, chegou-se a Nosso Senhor com um prato de vermelhíssimos camarões de Palomares: “Aceita Senhor, Bom Deus!” E logo o poliglota patriarca das barbas, com um vozeirão que tomara Pavarotti, declinou: “Pues, Paco, hijo mio, no gracias, que te hagan buen provecho.”
Nesse 17 de Janeiro de 1966, Francisco Simó Orts, filho de Deus e de Palomares, levantara-se cedíssimo, umas não sei quantas da matina, hora de Marcelo, que às 6 já o seu barco zarpava do cais, Mediterrâneo dentro, à pesca de camarões. Levava quatro horas de faina, eram dez e meia da manhã, e Francisco dá conta de que arrastavam cadeiras no celestial firmamento – levanta, por isso, os olhos ao céu. Vê um incêndio lá no alto, a dez mil metros, já perto de um dos dedos mindinhos de Deus. São, parece-lhe, aviões a explodir, e eis que, primeiro uma pequena bala negra, depois, à medida que desce, a tétrica sombra do tamanho de dois caixões, se aproxima, apontando, sinistra, ao barco. Francisco e a tripulação manobram e o aterrador maná do céu tomba ao lado, afundando-se onde o Mediterrâneo é mais fundo.
Céu e mar regressam à sua imemorial indiferença. E, não obstante, acabara de cair à frente de Francisco e dos seus pescadores, uma bomba atómica com uma potência 17 vezes superior às de Hiroxima e Nagasaki. Não calemos a verdade: foram quatro as bombas atómicas que, naquele 17 de Janeiro, caíram sobre Palomares. Vinham num B-52, numa operação secreta da secreta Guerra Fria. O B-52 tentara a rotineira acoplagem com um avião de abastecimento, mas houve uma explosão, que logo matou sete tripulantes. Quatro aviadores do B-52 ejectaram-se e as quatro bombas atómicas soltaram-se também e desceram não activadas sobre Palomares. Três caíram em terra. Nenhuma explodiu, mas o impacto no chão provocou danos que soltaram meio quilo de plutónio, com a consequente contaminação radioactiva. A população acorreu, recolhendo os pilotos e indo ver os restos dos aviões e as bombas com a mesma inocência e alegria com que catraios comprariam algodão doce numa quermesse organizada por António Costa em São Bento.
Dado o alarme, a pascácia censura franquista calou tudo. Os americanos trouxeram pessoal para recolher troços e destroços, aviões, engenhos nucleares, até a terra contaminada em milhares de tambores selados. Faltava, todavia, uma bomba. Francisco, conhecido, a partir desse dia atómico, como Paco-el-de-la-bomba, disse aos americanos que sabia onde estava a faltosa e malvada. Durante 80 dias levaram-no ao mar, ele a dizer onde e os matemáticos e especialistas a apontarem noutra direcção. Até que, fazendo-lhe a vontade, enfiaram um submersível para onde o dedo de Paco apontava. Acharam, a 900 metros, intacta, a infecta e diabólica bomba.
O anátema da radioactividade caiu sobre a região. Camarões, boquerones, salmonetes, uns tomatinhos ou uma lechuga de Palomares, está bem abelha, come-os tu… Antecipando os democráticos mergulhos no Tejo de um certo presidente português, o expansivo Manuel Fraga Iribarne, ministro primaveril de Franco, e o embaixador americano vieram mergulhar naquelas águas, com sorrisos de orelha a orelha, provando que “no pasa nada”. Pelo conluio com os americanos, o ditador Franco não se livrou de ouvir de um general, Muñoz Grandes, imputado agora de crimes contra a humanidade, esta acrimónia: “Que Fraga lave a tripa em Palomares com os americanos e se diga que não há nada, falando grosso e depressa, é o mesmo que baixar as calças.”
Da Página Negra, texto publicado na coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.
Na foto do alto, um dos destroços. Logo acima, Fraga e o americano.