Arte ao meio-dia, lixo à meia-noite

Não se dá o devido valor ao arrepio na espinha, forma popular de designar o orgasmo estético. Recuemos aos anos 60 e visitemos o Fogg Museum, em Harvard. Uma tela de Matisse prende os nossos olhos. Uma chispa de prazer corre-nos pela medula com a velocidade e o estonteante drible do benfiquista Rafa: é só uma tela, um rosto de mulher, e é como se uma colher de paraíso se derramasse na ilha triste que é qualquer coração. Sai-nos boca fora, com dois pontos de exclamação, esta alegria infantil: que bonito, oh, que bonito.

Porém, uma semana depois, os jornais dizem que o quadro é falso. Pode o arrepio na espinha ser retráctil? Pode o benfiquista Rafa desfazer os dribles e correr veloz às arrecuas?

Foi este o pão e manteiga dos dias de Elmyr de Hory, herói do filme F de Fraude, de Orson Welles”. Antes da manteiga, já Elmyr comera o pão que o diabo amassou. Até pode ter nascido num estábulo, na remota Hungria, sabe-se lá. O que interessa é que Elmyr substituiu essa risível realidade por ascendência aristocrática e um pai embaixador austro-húngaro. Mentia e dava gosto acreditar nele. Foi uma sopa de mentiras que deu gasolina à fuga do campo de concentração nazi onde o vazaram, por ser judeu e homossexual. Meia-verdade nazi: de judeu nada tinha, homossexual era sempre que podia.

Lixe-se a verdade e falemos do amor. Em Paris, Elmyr estudou belas artes com o cubista Fernand Léger. Quando fecho os olhos e vou à Paris dos anos 40, vejo Elmyr a vender os seus quadros, na Place du Tertre, o Sacré Coeur tão perto. Mas vejo também que Elmyr está num desassossego que poria apopléctico o Bernardo Soares de Fernando Pessoa. Lembram-se daquela coisa das ideias inatas? Paris despertou e pôs em brasa a inata vontade de luxo e volúpia de Elmyr: festas, caviar, o efervescente champagne, todo o frufru, seda ou veludo, que o corpinho humano pede. A vender os seus próprios quadros, está bem, abelha, nunca Elmyr lá chegaria.

Um dia, Elmyr desenha à Picasso, um Picasso original. Num silêncio interrogativo, põe-o na mão amiga de um art dealer inglês, que logo sobe ao céu: um Picasso, diz, e oferece uma pequena fortuna. Foi o dia da Criação para a alma de Elmyr. Pintou Picassos, a seguir Matisses, Modiglianis, Renoirs. Sempre originais. Primeiro conquistou Paris, depois Manhattan. O Texas petrolífero por fim.

Pequeno sobressalto a roçar o opróbrio: um galerista de Los Angeles, desconfiado do portfólio de originais de Elmyr, grita-lhe “a porta da rua é a serventia da casa”. Na rua, humilde, Elmyr murmura: “Mas acha que os quadros não são bons?” Não são bons, são obras-primas de falsificação, festa dos olhos e dos sentidos, que o Fogg Museum não só compra como expõe. E foi aqui que o busílis chegou dos olhos ao nariz: um, dois, três especialistas viraram do avesso um Matisse de Elmyr. Verdadeiro nas duas primeiras avaliações, que maravilha; falso, à terceira, que vergonha. Já foste Elmyr: era arte ao meio-dia; é lixo à meia-noite.

No Texas, Algur H. Meadows, magnata do petróleo, fica a saber que tem a maior colecção do mundo de falsificações de Degas, Bonnard, Matisses e Picassos. Numa raiva inestética, põe o FBI à caça de Elmyr. Para escapar, o nosso herói esconde-se na Espanha de Franco e trata a clandestinidade a pata negra e botellas de Vega Sicilia. Mas o ditador Franco vai extraditá-lo – fascista! Com o sossego da uma mão cheia de comprimidos, Elmyr deixa este mundo legalista: finta a prisão e vai direito ao céu dizer a Picasso que pintava tão bem como ele.

Da Página Negra, texto publicado no Jornal de Negócios

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.

F for Fake, em Portugal F de Fraude, no Brasil é Verdades e Mentiras.

Na foto, Elmyr de Hory com o cineasta que contou sua história.

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