A orelha de Van Gogh

Dizemos “irrevogável” e já mal nos lembramos de Paulo Portas. Esquecido e escasso, o adjectivo de género duplo regressou, rabo entre as pernas, à morna sonsice do dicionário. Tivesse Paulo Portas, como Van Gogh, cortado uma orelha e outro dicionário cantaria. Mas quem é que hoje se atreve a cortar uma orelha?

Ouçam Mário Centeno e António Costa: “Cortamos meia orelha cada um se não crescermos 2% acima da média europeia!” Pois sim, quem cortou uma orelha foi Van Gogh. A 23 de Dezembro de 1888, fechando um ano de euforia e desespero.

Na casa amarela de Arles onde morava, em França, sobre o Mediterrâneo, vivia também outro pintor, Paul Gauguin. Van Gogh convidara-o para o que imaginava vir a ser um cenáculo de artistas capaz de pintar a manta e reinventar o mundo. Os primeiros tempos de convívio dos dois lembram o romântico ménage à trois socialista, a que Catarina, Jerónimo e Costa emprestaram mais o corpo do que a alma. Faltavam duas noites para o Natal, e talvez estivessem a regressar do bordel da rue du Bout d’Arles, nº 1 – e já estou, de novo, a falar de Gauguin e Van Gogh. Olhem para eles: gritam, numa exaltação eléctrica. Gauguin, Catarina e Jerónimo afirmam o primado da fantasia na pintura. Van Gogh e Costa juram por uma realista fidelidade às coisas tais como são. Já arde na casa o lume das palavras mais revolucionárias, mais reaccionárias, e nenhum se cala.

Gauguin fez o que Catarina e Jerónimo não podem fazer, saiu porta fora e enfiou-se num quarto da primeira pensão que encontrou. Sozinho, na casa amarela, Van Gogh, que aspirava a tudo, menos a maiorias absolutas, tocado a absinto, numa alucinação galopante e irrevogável, cortou a orelha. Não o lóbulo ou um pedacinho da parte superior, mas a orelha inteira.

Van Gogh tem na mão a irremediável orelha. Embrulha-a num pano de linho, que logo o sangue tinge. Caminha, da Place Lamartine, onde fica a sua casa amarela, até à casa de tolerância no nº 1, rue du Bout d’ Arles. Bate à porta e pede que chamem Rachel, que hoje sabemos ser Gabrielle. Ela não tem mais de 18 anos, uma bela cara camponesa, rosadas maçãs do rosto. Van Gogh dá-lhe o delicado e tintado pano e diz: «Aqui tens… em memória de mim.» Rachel, ou Gabrielle – e que interessa, se era a inocência em pessoa –, abre o pano, vê o que vê e desmaia.

Gabrielle era da casa, mas, sabe-se hoje, não era uma das meninas da casa. Casou e teve filhos. Um ano antes, mordera-a um baboso cão raivoso. Queimaram-lhe a ferida com um ferro em brasa e levaram-na a Paris, tinha Pasteur acabado de inventar a vacina contra a raiva. A família pagou a pipa de massa que não tinha e Gabrielle teve de ir trabalhar como criada, no lupanar, e também no café em que o obsessivo Van Gogh sempre se sentava à mesma mesa.

Disputavam-na Gauguin e Van Gogh? Mais do que por uma guerrilha estética, terá sido por causa da saudável beleza dela que os dois se zangaram? Nenhum de nós, nestes tempos de tão civil razoabilidade, porá as mãos no fogo pelo caso. Mas pô-las Van Gogh, que já antes, na Holanda, se apaixonara por uma prima, viúva recente, e quando os pais dela o proibiram de a ver, pôs a mão na chama de uma lamparina, pronto a arder se não a chamassem. Na Bélgica dera toda a sua roupa aos pobres. O anjo em dor era a paixão de Van Gogh. E Gabrielle, tão jovem, de beleza tão boa, obrigada a correr de limpeza em limpeza, do café ao bordel, era o anjo caído de quem Van Gogh quis, no acto de desespero de uma noite negra, ser o Cristo: «Aqui tens… em memória de mim.»

Da Página Negra, texto publicado no Jornal de Negócios

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.

 

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