A imprensa está cumprindo sua obrigação

Está havendo um entendimento profundamente equivocado sobre a cobertura jornalística destas primeiras semanas de governo Bolsonaro, em especial sobre os fatos que envolvem Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz e, portanto, de alguma forma o pai de um e velho amigo de outro.

Fala-se em “embate entre a Globo e Bolsonaro”, em “guerra da Globo contra Bolsonaro”.

Isso não existe. É ficção, como Papai Noel, Saci Pererê ou honestidade do Lula. O que está havendo é cobertura jornalística, jornalismo.

E é preciso dizer e repetir e enfatizar e realçar: a Globo não está sozinha. O tom usado pela Globo não é, de forma alguma, diferente do tom dos outros órgãos da imprensa, como O Estado de S. Paulo, a Folha de S. Paulo, as revistas Veja e IstoÉ.

Os jornais e revistas estão apenas cumprindo sua missão de informar os fatos e analisá-los. Só isso. O jornalismo não existe para incensar governos: está aí para fiscalizar, para mostrar o que está certo mas também o que está errado nas ações do governo e dos governantes.

Os partidários do atual governo – exatamente como os partidários dos governos lulo-petistas – fazem questão de ignorar aquela máxima maravilhosa de Millôr Fernandes: “Imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados”.

Ou a frase de uma decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos: “A imprensa deve servir aos governados, não aos governantes.”

Aliás, não há nada mais parecido com fanáticos de esquerda que os fanáticos de direita. Está cheio de posts nas redes sociais acusando o Ministério Público do Rio de imparcialidade – exatamente como os lulo-petistas faziam e fazem em relação à Justiça como um todo e ao ex-juiz Sérgio Moro em especial.

Há dois milênios se sabe que à mulher de César não basta ser honesta, tem de parecer honesta.

Depois de tanta falação dos Bolsonaros contra a corrupção, que levou o pai à Presidência da República, a eles não basta serem honestos: têm a obrigação de demonstrar que são absolutamente honestos.

E Flávio Bolsonaro tem provado e comprovado, a cada dia, que a honestidade dos Bolsonaro – com perdão pelo trocadilho infernal – é um mito.

A imprensa não está em guerra contra ninguém. Está apenas trabalhando, fazendo o que deve.

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Aqui vão alguns exemplos de como a Globo não está sozinha na forma de falar do governo Bolsonaro e das irregularidades que envolvem seu filho e seu amigo de décadas.

Na sexta-feira, dia 18, o Estadão tinha dois belos artigos, de Eliane Cantanhede e Vera Magalhães, cobrando explicações dos envolvidos nas irregularidades apontadas pelo Ministério Público do Estado do Rio com base em levantamentos do Coaf (o Conselho de Controle de Atividades Financeiras) e criticando o pedido de Eduardo Bolsonaro ao STF para suspender as investigações sobre o caso.

E o Estadão de sábado, dia 19, teve um editorial e um artigo, de João Domingos, no mesmíssimo tom.

“O presidente Jair Bolsonaro e sua prole se elegeram no ano passado, com robusta votação, prometendo acabar com os velhos vícios da política”, dizia o editorial. “Em 2017, por exemplo, o patriarca da família chegou a divulgar na internet um vídeo, gravado ao lado do filho Flávio Bolsonaro, para criticar ‘essa porcaria de foro privilegiado’ – que serviria, em sua opinião, para proteger políticos corruptos. Em outras ocasiões, os Bolsonaros usaram as redes sociais para atacar políticos que, segundo eles, só queriam se eleger para se abrigar da Justiça. Por esse motivo, não deixa de ser irônico que o senador eleito Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) esteja agora a reivindicar para si o foro privilegiado, no nebuloso caso das movimentações atípicas na conta bancária de seu ex-assessor Fabrício Queiroz.”

E concluía:

“Os Bolsonaros dizem e repetem que nada têm a esconder. Se é assim, quanto mais rapidamente vierem a público as justificativas adequadas para a estranhíssima movimentação de R$ 1,2 milhão em apenas um ano na conta do modesto motorista de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio, melhor será para todos – especialmente para aqueles que foram eleitos como impolutos paladinos da moralidade pública.”

Em seu ótimo artigo, João Domingos escreveu que o governo Jair Bolsonaro, nestes primeiros dias, tem superado as expectativas quanto a criar crises políticas:

“Bolsonaro é o primeiro presidente da História do País que tem três filhos em cargos eletivos: um deputado federal, Eduardo; um senador eleito, Flávio; e um vereador no Rio de Janeiro, Carlos. Todos eles ativos, beligerantes. Declarações de Eduardo têm causado problemas constantes, como a feita durante uma palestra, no Paraná, antes da eleição de Bolsonaro, de que para fechar o STF seriam necessários apenas um cabo e um soldado. Ou que a embaixada do Brasil será transferida de Tel-Aviv para Jerusalém. O que falta definir é a data.

“Flávio, ao trazer do Rio de Janeiro para Brasília uma investigação sobre movimentação bancária atípica de seu ex-motorista Fabrício Queiroz, jogou um problema sério no colo do pai. Tal atitude forneceu à oposição munição que ela não tinha. Afinal, tanto o pai presidente quanto o irmão deputado tinham feito declaração contra o foro privilegiado. E tem o cheque de R$ 24 mil de Fabrício para Michelle, esposa de Bolsonaro, que, segundo o presidente, é parte do pagamento de um empréstimo de R$ 40 mil que ele, Bolsonaro, havia emprestado ao ex-motorista, de quem era amigo.”

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No seu artigo da sexta, Eliane Cantanhêde escreveu:

“Desde o início, as reações à história levantada pelo Coaf e divulgada pelo Estado têm sido erradas do ponto de vista jurídico, político e midiático. Não é admissível que o policial militar e ex-assessor Fabrício Queiroz, sua mulher e suas filhas não apareçam para depor. É um desrespeito inaceitável com as instituições republicanas. Para piorar, Fabrício alegou questões de saúde para não depor, enquanto aparecia bem serelepe em entrevista à TV. Sem falar na dancinha do hospital…

“Em vez de esclarecer, os Bolsonaro trataram de complicar e quem cobrou publicamente explicações não foram o PT, a imprensa, a oposição, foram os generais, à frente o vice-presidente Hamilton Mourão. Se nem assim as explicações vieram, é porque provavelmente os envolvidos não as têm.”

Vera Magalhães iniciava seu artigo assim:

“Ao apresentar uma reclamação ao STF pedindo a suspensão da investigação, tocada pelo MP do Rio, sobre a movimentação bancária de seu ex-assessor Fabrício Queiroz, o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) se coloca na posição de investigado, da qual fugia até então, leva a crise para a vizinhança do Palácio do Planalto, com consequências políticas para a Presidência do pai, e expõe contradições centrais com o discurso de moralismo político que foi responsável em grande parte pelo sucesso político do clã até aqui. De todos os ângulos que se olhe, um tiro no pé. Ou, como me disse um ministro do STF atônito com o desdobramento da crise, tomou um ‘elevador para o inferno’.”

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A revista Veja da semana passada trouxe na capa a montagem da cara de Jair Bolsonaro sobre o corpo de Jânio Quadros, naquela famosíssima foto em que os pés dele demonstram não saber em que direção caminhar, com o título “Confusão na largada” e a linha fina “Desmentido três vezes pela própria equipe, Bolsonaro cria desordem na estréia de seu governo”.

Lá dentro, reportagem de seis páginas demonstrava essa afirmação.

O título da coluna de Dora Kramer não poderia ser mais claro: “Bom dia a cavalo”. Ela escreveu: “Os desencontros de declarações sobre atos e/ou intenções de governo francamente não são o mais grave. É ruim cada ministro ou assessor falar uma coisa. Mas o pior é o presidente não falar coisa com coisa: prega o fim da influência ideológica no governo e ao mesmo tempo atua de maneira profundamente ideológica. E não é só. (…) Em anos acompanhando a cena política de Brasília desde a redemocratização, francamente nunca presenciei nada nem de longe parecido em matéria de atuação presidencial.”

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Na Folha de S. Paulo deste domingo, dia 20, Bruno Boghossian escreveu:

“Os pagamentos feitos na conta do filho do presidente, revelados pelo Jornal Nacional, atravessam o discurso moral da família e arrastam consigo a imagem de todo o governo. Assim como o PT sofreu com o mensalão após ostentar a bandeira da ética por décadas, o bolsonarismo corre um risco considerável.

“Em junho de 2017, Flávio recebeu um salário de R$ 18.768 como deputado estadual. Naquele mês, alguém multiplicou esse rendimento por seis ao depositar R$ 96 mil em sua conta, divididos em 48 envelopes.

Caso o autor dos pagamentos não seja um filantropo que prefere ficar anônimo, o caso não pode passar mais um único dia sem explicação. Flávio conseguiu a proeza de dar duas entrevistas, mas não ofereceu nem uma desculpa esfarrapada. (…)

“O senador eleito insiste que os investigadores tentam fazer um ‘gol de mão’ e repete que tem todo o interesse em esclarecer o caso. Sua recusa em falar dos pagamentos contradiz tanto o discurso anticorrupção quanto sua linha de defesa.”

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E estes são apenas alguns exemplos.

Não há guerra alguma. E a Globo não está só. Muito ao contrário.

20/1/2019

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