A imaginação humana é esfomeada e vai com toda a sede ao pote. Não lhe chega o feijão com arroz da realidade. Ponham-se os olhos em Jean-Baptiste Botul. Ninguém sabe nada dos seus 51 anos de vida, de 1896 a 1947. Ora, nem todo o ouro do Banco de Portugal pagaria a riqueza da sua existência.
Botul foi filósofo. Tal qual Sócrates, nada deixou escrito. Errante, vamos descobri-lo a falar a uma comunidade alemã no Paraguai, fugida ao apocalíptico Exército Vermelho, em 45. Inspirada no pensamento de Kant, a comunidade veste-se como o filósofo, come e dorme como ele, dá, toda, o mesmo passeio vespertino com que Kant animava as ruas de Königsberg.
Bem antes do Paraguai, crava-se na biografia de Botul uma constelação de aventuras. Eis os cometas que atravessam incandescentes a sua vida: mulheres como Marthe Richard, a viúva-alegre de França da minha crónica anterior, Lou-Andreas Salomé, a amada de Nietzsche, a Beauvoir de segundo sexo, a adorável Josephine Baker; homens como o revolucionário Salazar, e falo neste caso de Emiliano Zapata Salazar, tão mexicano como o bandido Pancho Villa, ambos seus amigos, como finamente o foi Marcel Proust e depois André Malraux, ministro de De Gaulle, e ainda, ou por fim, Landru, o assassino em série, que esturricava viúvas, e em cujo forno se encontraram restos de mulheres correspondentes a três cabeças, cinco pés e seis mãos.
Voltemos ao Paraguai. Os refugiados alemães, porventura nazis de alto coturno, na sua perfeita imitação de Kant, deparavam-se com um dilema: como poderiam reproduzir-se se Kant foi em vida o exemplo da castidade absoluta? Botul, professor na Sorbonne, veio fazer-lhes um ciclo de cinco conferências em alemão, que alguém registou, e que, no último ano do século XX, outro francês descobriu e verteu para o livro com o título “A Vida Sexual de Emmanuel Kant”.
Numa revelação que rasga vestes de céus e terra, Botul esclarece, fulgurante, que a “coisa em si”, esse esplêndido conceito kantiano, é nem mais nem menos do que o sexo, confirmando o que, ao sussurrarem a branda expressão “dá-me a coisinha”, quer os habitantes da minha aldeia beirã de Vale de Madeira, quer os do meu musseque Sambizanga de Luanda, nocturnamente suspeitavam. E Botul, um passo adiante, acrescenta uma peculiaridade dos grandes espíritos: o filósofo é dotado de uma forma singular de se reproduzir, em vez de penetrar, retira-se. Esse retraimento – ou encolhimento – está na origem do estado de espírito de todo o filósofo: a melancolia.
A França universitária vibrou com a descoberta deste desconhecido Botul e houve quem, como o aturado pensador Bernard-Henri Lévy, o tenha citado com profusão num livro seu. Estaria tudo muito bem se não houvesse, e há sempre, um diabo nesta história. Botul nunca existiu. Esse filósofo, a sua biografia, os seus livros são um maravilhoso embuste literário primorosamente desenhado pelo professor de filosofia e jornalista Frédéric Pagès, da mesma forma que Orson Welles inventou a invasão da Terra pelos extra-terrestres na sua radiofónica Guerra dos Mundos. A França riu-se como o infeliz Macron não se consegue agora rir, e o vexado filósofo Bernard remeteu-se à dissecação terapêutica da coisa em si, relendo a “Crítica da Razão Pura” do sorumbático Kant.
O inexistente Botul continua a publicar livros, por exemplo “Landru, um percursor do feminismo”, e a associação dos seus amigos reúne-se em banquete anual, atribuindo prémios aos autores que o citam. Entre eles, Bernard-Henri, o mais cândido dos laureados.
Da Página Negra, texto publicado na coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.