Vi-lhes a alma

Não podemos ser todos Sócrates, pensou David E. Kelley, o produtor de Big Little Lies, pequena mini-série ovo, com clara televisiva e gema cinematográfica protegidas por robusta casquinha social. Não vi melhor este ano.

Sócrates, o da Apologia, recusava falar do que falavam os grandes homens do seu tempo. Pedia-lhes que cuidassem da alma. Imagino-o na ágora, a desviar conversas, a encafifar interlocutores com perguntas risíveis, quando eles queriam falar sobre os grandes temas. Com licença de Eça, naquele tempo havia já Acácios e Pachecos.

Ah, os grandes temas! Os grandes temas são a selva amazónica da nossa ágora, o seu ponto de exclamação. Os grandes homens e mulheres deste tempo peroram sobre os grandes temas. Respeitemos-lhes a grandeza e sejamos de uma homérica injustiça: a ágora, jornais, revistas, rádios e televisão estão sobrepovoados de Acácios e Pachecos. Os próprios grandes temas já são acacianos e pachequianos. O nosso tempo não é socrático, o que algum Sócrates contemporâneo poderá nostalgicamente atestar. Sócrates era o não-especialista: prezava a sua ignorância. Com ironia, digamos. Fazia perguntas a Acácios e Pachecos, mas não os admirava. Hoje, Acácios e Pachecos vingam-se: da boca de nenhum se ouvirá um socrático “como nada sei, estou certo de não saber”.

David E. Kelley sabe que ninguém, neste tempo, pode ser um Sócrates. Fez Big Little Lies e enche de pequenas mentiras, em vez de grandes verdades, os sete episódios dessa mini-série casquinha de ovo. Acácios e Pachecos desunhar-se-iam a falar de bullying escolar, de violência doméstica, de controlo parental. Com quatro mulherzinhas troianas, Kelley arranca a vida da selva amazónica, que são os grandes temas, e mostra-a numa mistura de riso suave e doçura intensa. É a grande esmola que a mão direita de Big Little Lies nos dá para esconder as grandes tragédias que a mão esquerda camufla.

Bem sei que vi tudo, copo de Quinta São Sebastião Colheita 2014 na mão, mas vi e ouvi a alma de Reese Witherspoon, Nicole Kidman, Laura Dern, Shailene Woodley e dos homens delas. E, com ecos de édipos, eléctras e traquínias (com perdão dos gregos), entraram-me em casa o amor e a violação, os filhos e a escola, o sexo e o híper-sexo, as inomináveis boas intenções. O cenário é um cheiro a mar.

Aviso a quem, por um mero acaso venha a ler daqui a 100 anos: esta crónica foi publicada num jornal chamado Expresso. Na verdade, era uma publicação semanal e vendia-se em vários lotes de folhas de papel dobradas. Um, maior, de folhas soltas a que se chamava “caderno principal”; outro, com uma capa e presa por agrafos, a que se chamava “revista”. Por estranho que vos pareça era tudo feito por pessoas e não por robots. Mais curioso ainda, pagava-se para ler… Estão-me ali a fazer sinais, pedindo-me que defina o que era pagar… Olhem, deixem ficar assim, está bem: era uma coisa antiga. Tinha imensa graça.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

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