O som de Renato e Almir é pura alegria

Não dá para saber, é claro, se ele se lembra, mas houve uma vez em que Renato Teixeira deu um show para menos de 20 pessoas. Eu me lembro: estava lá. Eu, Regina, Fernanda, Inês. Fiquei chocado, apavorado, em pânico, morrendo de vergonha por ele. Renato Teixeira era um dos meus grandes ídolos havia já alguns tempo, e eu não conseguia admitir que aquele pesadelo estava acontecendo de fato.

Não sei o ano exato em que aconteceu. Sei que foi na área do Anhembi, em São Paulo – havia uma espécie de circo junto do estacionamento do Anhembi, onde mais tarde, na administração Luíza Erundina (1989-1993) seria construído o Sambódromo. Mas não creio ter anotado o ano. As meninas eram pequenas – Fernanda devia estar com uns 8, talvez, e então Inês teria 12. Nesse caso, o show mais vazio da carreira de Renato Teixeira teria acontecido por volta de 1983.

1983 foi o ano em que Renato Teixeira deixou de ser contratado pela RCA, uma das grandes gravadoras, uma das majors. Estava sem contrato com uma gravadora, possivelmente sem um bom esquema de divulgação. Estava num momento down and out – e nobody loves you when you’re down and out, como John Lennon dizia em sua canção de 1974, do disco Walls and Bridges.

Me lembrei daquele show em que Renato Teixeira cantou para quase ninguém enquanto via o show dele ao lado do amigo e parceiro Almir Sater, no maravilhoso Teatro Opus, no Shopping Villa-Lobos, num dos lugares mais Primeiro Mundo de São Paulo – e o Teatro Opus estava bem cheio, bastante cheio, e Renato e Almir eram aplaudidos com muita energia por uma platéia que tinha gente de todas as idades.

Enquanto sorria de prazer diante do som extraordinariamente competente, extraordinariamente belo que Renato e Almir e seus seis músicos fazem, ficaram me passando pela cabeça lembranças da presença desse artista em minha vida.

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Não que eu não estivesse atento ao show, ao som, às canções – algumas delas inéditas para mim, porque estão no segundo disco da dupla, que ainda não comprei, e – estranhissimamente – não estava à venda na banquinha de discos junto da entrada do teatro.

Mas na minha cabeça teimavam em rolar imagens, lembranças.

Os discos de Renato Teixeira tocavam demais, mas demais da conta, no BSR que ficava na estante da Lundia Willo da Rua João Moura, onde Suely e eu morávamos na época em que Fernanda nasceu. Fernanda começou a vida ouvindo muita coisa, os nossos ídolos todos – mas Renato Teixeira era um dos que mais rolavam no prato do toca-discos BSR.

Os primeiros anos da vida de Fernanda, no meio do tsunami que foi o fim do casamento com a mãe dela, têm, na minha cabeça, o som de Romaria, o disco de 1978, e Amora, de 1979.

Fernanda tinha 2 anos em 1977,  quando Elis Regina lançou o Elis que tinha “Romaria” e também “Sentimental eu fico”, que Renato iria lançar no primeiro de seus álbuns para a RCA, exatamente Romaria.

O que ficou passando pela minha cabeça, enquanto eu ouvia, encantado, deliciado, Renato e Almir apresentarem seu show, foi essa sensação estranha, engraçada, de que a relação que a gente tem com nossos ídolos é capaz de atravessar as décadas várias, os casamentos vários.

Minha admiração pela música de Renato Teixeira atravessou os anos Suely, que afinal foram poucos, os anos Regina, que afinal não foram tantos assim, e vem atravessando gloriosamente meus anos Mary, que, a rigor, a rigor, são bem pouquinhos: afinal, em quase 30 anos, quantos shows do Renato assistimos, cacete?

Ah, alguns, alguns… Mas poucos, a rigor. Porque, mesmo que tivéssemos visto 28 shows de Renato Teixeira em 28 anos de casamento, teria sido pouco.

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Minutos antes de entrarmos no teatro, meu amigo Melchíades me mostrou a página inteira da Folha de S. Paulo do domingo, 10 de junho, com uma entrevista de Renato Teixeira para Bruna Narecizo.

Conta-se, ali, uma história maravilhosa, apaixonante, emocionante, que eu não conhecia.

O jornal diz que o fato aconteceu em meados dos anos 80, mas creio que deve ter sido antes disso; deve ter sido no final dos 70, ou então bem no início dos 80. Mas isso é detalhe.

Renato Teixeira havia sido contratado para abrir um show de Luiz Gonzaga num teatro. Ele terminou sua apresentação com “Romaria”. Ao sair do palco, passou pelo velho Lua, e ele disse:

– Você cantou sua “Asa Branca”.

Renato disse para a repórter que tinha, então, 30 anos. (Seria, então, 1975.) E respondeu:

– Pô, o senhor está tirando sarro da minha cara, né, seu Luiz?

O homem que é uma das pontas da Santíssima Trindade que definiu a Música Popular Brasileira – ao lado de Noel Rosa e Dorival Caymmi –  disse para o rapaz:

– Você vai ver daqui a 30 anos se eu não estou falando sério. E vou te dizer mais: toda vez que for cantar a sua música, cante como se fosse a primeira vez. Porque isso (compor uma canção como “Romaria”) é pura sorte.

Claro que não é só só sorte, né? Há que ter talento, muito talento, para compor uma música que vira hino, atravessa décadas, gerações – pérolas raras como “Asa Branca” e “Romaria”. Mas acho que o velho Lua tinha razão também nisso, dizer que tem que ter sorte. Há que ter talento, muito talento – e muita sorte, para atrair desse jeito a simpatia das ninfas da inspiração.

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Renato Teixeira compôs sozinho uma penca de canções belíssimas. Junto com Almir Sater, escreveu, já lá se vão quase três décadas, a obra-prima que é “Tocando em Frente”, que Maria Bethânia gravou em seu disco 25 Anos, de 1990.

Os dois – o caipira do interior paulista e o pantaneiro – viraram vizinhos na Serra da Cantareira, ao Norte de São Paulo, e em meados de 2016 lançaram um disco a dois, AR, as iniciais de Almir e Renato – dez canções novinhas em folha, nenhuma delas mais fraquinha, um disco extraordinário, um som refinadíssimo, uma fantástica mistura, uma fusion de caipira com country, o mais fino caipira com o mais trabalhado country, gravado parte aqui, parte em Nashville. Foi uma produção de Almir e Eric Silver, um multi-instrumentista americano.

Para lançar o disco, fizeram uma série de shows com o amigo Sérgio Reis. Tive a sorte de ver uma das apresentações no gigantesco e belo Espaço das Américas – casa lotada.

Neste show agora, que fica até o fim de junho no Teatro Opus, sempre às segundas e terças, Renato diz que é a primeira vez que ele e Almir celebram a parceria no palco. Sim: só os dois, esta é a primeira vez – “A Primeira Vez”, nome de uma das canções do primeiro disco. Eric Silver, o homem do country de Nashville, é um dos seis músicos que acompanham os dois compositores e cantores.

Dez canções novinhas em folha em 2016, outras tantas agora, meados de 2018.

Almir Sater é de 1956, está com 61 anos. Um garotão. Renato, de 1945, está com 73. Com essa idade, poucos compositores são tão férteis assim.

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Quando entrevistei Renato Teixeira longamente, no apartamento em que ele morava nos Jardins, em 1984, ele estava lançando Azul, o único álbum que fez para o Estúdio Eldorado. Meu texto de página inteira do Jornal da Tarde começava assim:

“Renato Teixeira ouviu seu novo disco e chegou à conclusão de que sua música, afinal, não é triste. É um rótulo que muitas pessoas usam, quando se referem à música de Renato Teixeira: triste. Ou fossenta, ou pra baixo.

“– Minha música não é triste – diz Renato Teixeira. – Eu sempre tive um grilo com isso de as pessoas dizerem essas coisas. Eu não me acho um cara triste. Eu sou mais pelo lado da emoção, é verdade. Mas pra baixo eu não sou. Eu não sou pessimista. Minha música é otimista.”

É impressionante. Duas características se destacam no show de Renato e Almir: a qualidade do som – os arranjos, a execução – e a alegria.

A música que Renato Teixeira e Almir Sater fazem juntos é de uma alegria espantosa, maravilhosa, sensacional.

11 e 12/6/2018

Fotos Mary Zaidan.

Outros textos sobre Renato Teixeira neste site:

1984: Renato Teixeira conclui: sua música não é triste.

2016: Bela caixa reúne os cinco álbuns do artista na RCA.

2016: Tocando em frente, devagar, com maestria.

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