Mas quem é que hoje ainda apanha um comboio? Eu sou do tempo em que até se apanhavam comboios para 1920. John Wayne apanhou um desses belíssimos cangalhos ronronantes e desembarcou em Inisfree. Foi a mando de John Ford e o comboio chegou com três descomprometidas horas de atraso.
Bem sei que é um filme e se chama The Quiet Man. E o que interessaria que houvesse filmes, se não fosse para nos restituir, a brilhar como olhos de tigre na noite escura da realidade, a chama e os fumos do sonho?
Há uma coisa que me confunde na ubiquidade de Deus. Não sei se ele é o mais transumante dos nómadas, se é o mais arreigado dos sedentários. Mas é nos sítios perdidos do mundo, que podemos ainda encontrar esse Deus de cascos equinos, cabra montesa a pastar montes.
Em Corvos, por exemplo. Se nalgum lado parasse, pararia aqui o comboio de Inisfree, de John Ford. E, nesse Alentejo, desviado umbigo de Deus, há um restaurante que leva o esforçado nome “A Paragem”. Escuso de dizer que comeriam ali os anjos se Deus ou Rabelais os agraciasse com o pecado da gula. Foi lá um grupo de alienígenas meus amigos. A patroa, com uma alacridade de Inisfree, gritou-lhes que eram muitos, não podia atendê-los: “Estou cá sozinha, até o meu vizinho, veio ajudar-me ao balcão.” E, depois, numa explicação consoladora, disse: “Os meus empregados foram todos à Festa do Avante.” Bem se vê, os empregados de “A Paragem” meteram-se, como se meteria o dono da estalagem de Inisfree, num comboio de 1920.
Desse mesmo comboio desceram, em Mértola, quatro viúvas quadricolores em fim de sexagenato, vestidas, mesmo no inclemente meio-dia de um domingo de Setembro, com os vestidos, folhos e colares de ir à missa, que devem ter ido buscar ao falecido guarda-roupa da minha querida mãe. Vinham de visita turística ao alcantilado castelo e o incendiado meio-dia pedia água fresca, fosse a um camelo, a mim, também a elas. O fru-fru das sedas não camuflava o guerrilheiro suor das axilas, a perlada testa. Onde seria mais fresco, ficar na esplanada ou ir para a sombra interior do café, perguntaram ao empregado? Era uma pergunta de 1920. Ora o empregado, nem era de comboios, nem tinha ido à Festa do Avante. Eis a ecológica resposta: “Se é para evitarem o enfarte de miocárdio, é melhor irem lá para dentro.”
Este artigo foi originalmente publicado no jornal português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.
The Quiet Man no Brasil é Depois do Vendaval.