Antigamente, nos tempos de ventura dele, ali pelo final dos anos 70, começo dos 80, anos finais da ditadura militar ao qual serviu com diligência, respeito, aplicação, Paulo Maluf era tido como o sujeito que fazia, que construía.
Fazia muitas obras, quando prefeito, é verdade. Muito concreto, muito superfaturamento, muita roubalheira. Fez, por exemplo, o Minhocão – um elevado para carros que provocou uma das maiores tragédias urbanas do país, degradando um longo trecho da área central de São Paulo. Fez um elevadinho em cima de uma praça, a 14 Bis, que, como magnificamente titulou Humberto Werneck a reportagem, no dia da inauguração, de um foca, um iniciante, um tal de Sérgio Vaz, “ligava o nada ao nada”. Fez túneis, elevados – tudo para os carros de passageiros. Nada para ônibus. Tirou a participação (pequena) que a prefeitura da capital tinha no metrô. Transporte público nunca foi com ele.
Mas construiu fama de que construía coisas. “Foi Maluf que fez” virou primeiro um slogan dele – até depois se transformar em chacota, quando o não-malufismo passou a usar o “foi Maluf que fez” para se referir a obras que não tinham absolutamente nada a ver com ele, como, só para dar uns exemplos, o Pico do Jaraguá ou a Via Anchieta.
Me lembrei do “Foi Maluf que fez” nesta quinta-feira antes do primeiro turno das eleições de 2018, ao ler dois belos textos, os artigos de Ascânio Seleme e de Cora Rónai publicados em O Globo – ambos demonstrando que o pântano, a areia movediça, em que o país está metido até o pescoço, foi aquele aliado do velho Paulo Maluf que fez. Aquele lá, que em 2012, foi até a casa do Doutor Paulo posar sorridente ao lado dele e do rapaz que eles apoiavam para a prefeitura de São Paulo, Fernando Haddad.
Conforme demonstram os artigos de Ascânio Seleme e Cora Rónai, foi Lula que fez o brejo em que o país está.
Foi Lula que fez.
Claro, óbvio: não fez tudo sozinho. Nem mesmo ele, o Padim Padre Cícero dos novos tempos, o demiurgo de Garanhuns, o babalorixá do Fôro de São Paulo seria capaz de fazer tudo sozinho.
Mas, ah, ele fez a maior parte. A imensa maior parte.
Lula não apenas chefiou os dois imensos esquemas de corrupção, o mensalão e o petróleo. Lula não apenas dirigiu o processo de infiltração de petistas em todas as esferas do Estado brasileiro, a privatização da máquina pública em benefício do seu partido e dos seus seguidores. Lula não apenas entregou a sindicalistas amigos incapazes a gestão dos maiores fundos de pensão do país. Lula não apenas abriu a porteira para que seu Poste número 1 levasse o país à pior recessão de sua História.
Lula fez tudo isso, é verdade. Foi Lula que fez.
Mas ele fez mais. Ele abriu caminho para Jair Bolsonaro. Abriu, pavimentou o caminho, deixou tudo prontinho para Jair Bolsonaro chegar até o ponto em que chegou.
“Se Haddad é poste de Lula, Bolsonaro é o resultado de sua obra, é a sua criação”, escreveu Ascânio Saleme.
“Bolsonaro é uma consequência óbvia, quase previsível, do discurso de ódio de Lula: uma consequência óbvia, e quase previsível, do antipetismo que este discurso gerou”, escreveu Cora Rónai.
Aí vão as íntegras dos dois artigos.
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Agradeça a Lula
Por Ascânio Seleme, O Globo, 4/10/2018.
Não importa quem vá para o segundo turno. Não importa quem ganhe a eleição no fim do mês. O vitorioso terá de agradecer ao ex-presidente Lula pelo seu sucesso. Se Fernando Haddad se credenciar agora e levar o pleito do dia 28, o poste terá vencido graças à genialidade do seu criador e mentor. Se Bolsonaro ganhar, aproveitando a onda antipetista que varre o país, será graças à política insistente do “nós contra eles” de Luiz Inácio.
Esse discurso começou no já remoto mensalão. Primeiro, quando o furúnculo explodiu mostrando o carnegão do esquema de compra de partidos em troca de apoio político, Lula disse que não sabia de nada, que foi traído e mandou alguns dos seus velhos companheiros para a guilhotina, como Genoino, Gushiken, Dirceu, Delúbio e João Paulo. Depois, quando percebeu que podia ir mais longe, passou a negar a existência do esquema que resultou na condenação e prisão de 24 pessoas, seis delas do PT.
Lula começou então a nomear o “culpado” pelo mensalão. Foram “eles”, na palavra do líder que cumpre pena em Curitiba. Foram “eles” que inventaram a história para impedir que o brasileiro continuasse a comer três vezes por dia e a andar de avião, repetia. No princípio, nem os próprios companheiros de Lula acreditavam naquela bobagem. Mas ela foi se consolidando entre políticos e militantes que se recusavam a enxergar a verdade e precisavam de uma saída honrosa.
Nenhum pedido de desculpas jamais foi feito por este ou pelo outro grande escândalo da era petista, o petrolão. Afinal, eles não existiram mesmo, afirmava o líder de todos. A culpa era “deles”, que queriam acabar com as conquistas do povo obtidas durante o governo do PT. É incrível como tanta gente de esquerda, honesta e inteligente, se agarrou àquela explicação patética como se fosse verdade. Muitos nunca acreditaram na lorota, e alguns deixaram o partido envergonhados, é bom que se diga.
Lula não inventou a luta de classes, ao contrário, fez um documento em que pregou paz na política nacional, onde caberiam todos, e jurou aplicar as regras do mercado na economia. Mas ele inventou a guerra do “nós e eles”. O “nós” era Lula e todos os seus companheiros de PT e de partidos aliados, os que lutavam por um Brasil mais justo. Por um bom tempo, o “nós” abrigava também o PMDB de Temer, Jucá, Cunha e Renan. E o “eles” eram os demais, os inimigos do povo.
Como diz o ex-deputado petista Eduardo Jorge (PV), candidato a vice de Marina Silva, “o ódio foi plantado há muitos anos, não nasceu como um cogumelo, da noite para o dia”. Ele se refere a Lula e ao seu discurso diuturno contra os que pensam de modo diferente ou encontram soluções alternativas às do PT para o Brasil. Discurso amplificado após o impeachment de Dilma e que ganhou o aposto do “golpe”.
Essa retórica de Lula, que ainda aglutina quem acredita na inocência petista e que agora dá a Haddad mais de 20% do eleitorado, está da mesma forma transferindo muitos votos para o outro lado, o oposto do PT, o antipetismo absoluto. Por isso, Lula será responsável por qualquer resultado na eleição presidencial. Se Haddad é o poste de Lula, Bolsonaro é o resultado da sua obra, é a sua criação.
É verdade que Lula teve uma mãozinha do seu velho inimigo, o hoje quase irrelevante PSDB. O partido, que fez o Real e governou o país por dois mandatos, colocou as mãos na mesma massa suja em que o PT enfiara as suas. Sem um líder carismático como Lula, um mártir, um “inocente” preso, o PSDB naufragou com um discurso antiquado e um candidato água morna.
Ninguém tem bola de cristal, nem Lula. Mas se ele tivesse se dado conta há um ano da tormenta que agora se avizinha, certamente teria trabalhado para que o PSDB fosse o adversário no segundo turno. Ou teria proposto uma aliança em torno de outro partido e com outro candidato, Ciro Gomes, por exemplo.
O fato é que, se vencer no dia 28 de outubro, além dos inegáveis méritos próprios, sobretudo o de saber surfar a onda na hora certa e o de usar de maneira eficiente as redes sociais (com mentiras e meias verdades), Bolsonaro terá de agradecer a Lula pela alavancagem que lhe garantiu um tsunami de votos que nem o mais fiel seguidor do capitão poderia imaginar.
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Soberba 10, esperança 0
Por Cora Rónai, O Globo, 4/10/2018.
Eduardo Jorge, vice de Marina, ao Huff-Post: “O Bolsonaro é uma obra do Lula. A pregação do “nós contra eles” durante anos a fio levou o País a essa divisão extremada e ao naufrágio econômico e social do governo do PT e do PMDB. Com uma pregação odiosa, o Lula insultou seus adversários políticos durante 10, 12 anos. Em uma democracia, é muito importante que você respeite o adversário.Demonizar e desejar a destruição do adversário leva a uma polarização tremenda, e o adversário reage. Então o Bolsonaro e o ressurgimento da direita autoritária no Brasil são resultados desses anos de governo do PT.”
Christian Lohbauer, vice de João Amoêdo, ao Metrópoles: “Bolsonaro é resultado do modelo [político] que o PT criou. Ele é uma consequência do PT.”
Bolsonaro é uma consequência óbvia, quase previsível, do discurso de ódio de Lula: uma consequência óbvia, e quase previsível, do antipetismo que este discurso gerou. Aliás, antipetismo, como já escrevi uma vez, é palavra da moda, e é de grande ajuda para o PT continuar na sua posição de vítima. Os demais partidos têm oposição, coisa normal no mundo da política; o PT não, o PT tem “antipetismo”, essa síndrome que acomete pessoas más que não querem ver pobres viajando de avião.
A palavra não é inteiramente gratuita, porém. Nenhum partido grande é detestado com tanta intensidade pelos eleitores, não só pela empáfia, pela corrupção e por ter sido governo pelo tempo da memória recente, mas também porque nenhum outro é tão coeso ou tem uma militância tão visível. Só se detesta o que é discernível e relevante.
Os demais partidos grandes não têm consistência, são meros ajuntamentos de oportunistas, reunidos pelos piores motivos, que saltam de legenda em legenda ao sabor das eleições. Mas o PT não está sozinho na criação de Bolsonaro; o PSDB, que finalmente derrete a olhos vistos, também tem culpa nessa gestação.
O partido traiu os seus eleitores de todas as maneiras. A mais grave talvez tenha sido abdicar do seu papel de oposição —assim que se tornou oposição. Quando Lula se elegeu em 2002, com 61% dos votos, os seus quadros pusilânimes não entenderam que representavam os outros 39%.
Não defenderam o governo de Fernando Henrique Cardoso das constantes diatribes de Lula, não defenderam as privatizações, sequer se defenderam do discurso petista que colava no partido o rótulo de “direita”, quando não “extrema-direita”. O PSDB não entendeu que tinha eleitores, e não militância; não tinha a proteção da camada de teflon da ideologia.
O que poderia ter se firmado como saudável opção de centro para quem não queria o PT virou massa amorfa com o correr dos anos, indistinguível de outras siglas de origens menos bem intencionadas. A permanência de Aécio Neves entre os quadros, depois do escândalo das gravações, acabou de vez com a sua reputação.
Agora, olhando o desastre nos olhos, tentamos nos agarrar aos últimos fiapos de esperança de um primeiro turno condenado, como se pudéssemos desfazer em três dias as teias de ódio, de ignorância e de desamor ao país que levaram tantos anos a se formar.
4 e 5/10/2018
Caramba, como a Cora escreve bem. Ela é cirúrgica! A única falta que sinto de não entrar mais no Facebook é perder os ótimos posts e textos dela.
E sim, o Lula e o PT empurraram o Brasil para os braços do Bozo. Não tem volta.