Filmes, marmelada e um funeral

Quem frequenta salas de cinema é suspeito. Exige-se-lhe que responda, com cara de Buster Keaton, a este questionário slapstick à la Proust iniciado a semana passada.

Filme para uma bela sessão de, digamos, marmelada no cinema
 Se é para estar de olhos abertos, mãos e dedos perscrutantes, Body Heat, Sea of Love, o Cat People do velho Tourneur. Se é para atacar às cegas, gemidos e mais do que sussurros, talvez duas cadeiras esmigalhadas, escolha Transformers, Mad Max ou o ruidoso This Is Spinal Tap. Não se desgrace: cuidado com os silêncios em filmes de Straub ou Manoel de Oliveira.

Filme para ver depois uma valente ruptura conjugal
Vai precisar de muita nostalgia e capacidade de se rir de si mesmo. Ponha-se nas mãos de Peter Bogdanovich, sabendo que a coisa só já lá vai com sessão dupla: Last Picture Show e Texasville.

Filme para ver um ano depois da morte da mãe
Deixe-se levar e lavar em lágrimas com o milagre e ressurreição de A Palavra, do dinamarquês Dreyer. Só para os de pouca fé é que uma morte é definitiva.

Filme para ver um ano depois da morte do pai
Não há pai como o Donald Crisp de O Vale Era Verde. É abandonado por todos os filhos, menos um. Todos queremos ser esse humilde menino de sete anos, que pigarreia ao fundo da mesa para que o pai lhe diga: “Sei que estás aí, meu filho”.

Que filme ver depois de sair da prisão
Se sai com a sensação de que ainda merecia mais cinco aninhos de pena, Goodfellas vai saber-lhe bem. Se sai inocente como entrou, nada o ligando ao BES ou a palmanços de armas em Tancos, console-se com o In the Name of the Father. Pickpocket, de Bresson, é para ex-presidiários mais metafísicos.

Filme para curar qualquer depressão ou ressaca
Toda a gente dirá Blues Brothers. A mim o que me resgata do fundo do poço é a velocidade e os dois leopardos de Bringing Up Baby; ou os cães e a doce tecnologia da casa de Mon Oncle, de Jacques Tati.

Filme para um regresso à infância
No ET as lágrimas vieram-me de bicicleta, mas o bolo inteiro da infância, curiosidade, alegrias e medos, reencontrei-o no bando de miúdos de Stand by Me.

Filme para os meus amigos se juntarem a ver depois do meu funeral
A Matter of Life and Death
na esperança de que haja engano lá em cima e possa ser recambiado cá para baixo.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *