Em louvor do Panteão

Já me disseram que bem podemos meter o cânone de Harold Bloom no sítio que todos sabem.

Virá uma tarde, àquela melancólica hora em que tomba lento no horizonte o crepúsculo dos deuses, e alguém me dirá que posso também meter no mesmo sítio os velhos filmes de Ford, a começar pelo The Searchers, os velhos Lubitsch, a acabar na Ninotchka, os velhos Hitchcock, começando e acabando no North by Northwest.

E Jesus me valha se eu em verdade, em verdade não vos disser que anda alguma gentinha a confundir o cu com as calças. A confusão é velha, tem mudado muito de calças, mas pouco de cu. Os maiúsculos Grandes Livros e Grandes Filmes já não são a fonte de conhecimento necessária para este tempo, dizem. Quando eu, em Luanda, vinha a pé do Liceu Salvador Correia até casa, os quedes brancos enfiados em areais cor de acácias, já havia uns velhos corvos a crocitar a morte do saber burguês. Anunciavam o homem novo, com filosofia dicotómica e vermelha. Era uma filosofia sedutora, na sua simplicidade de bons e maus, mas mesmo quando andei de punhinho no ar e pequeno livro a substituir-me o bilhar de bolso, houve sempre um ponto inegociável: os velhos livros e filmes eram o panteão vivo a que sempre voltava.

A confusão crítica era e é a de reduzir esses grandes livros e filmes a repositórios ideológicos ou filosóficos. Ora, o cu marxizante, neo-realista, que assim os criticava, voltou agora na forma de cu ressentido, de género, etnicizante. Reduz tudo, cu e calças, a um saber ideológico, teórico-político. Escapa-lhe a humaníssima experiência estética: a ideologia nunca soube o que fazer com a ficção, com a indisciplina da emoção.

Os livros que Bloom elegeu, os filmes de Ford, Hawks, Renoir, Ozu, Dreyer, não são filosofia. São prodigiosos trabalhos de imaginação que geram emoções. Oferecem-nos acções e sentimentos que acordam em nós um músculo adormecido e rimam com as nossas vidas. Alguém nos terá amado da forma clandestina como a cunhada ama John Wayne, em The Searchers. Um dia partiremos, como Wayne, e enquanto desaparecemos no deserto que nos engole, uma porta há-de fechar-se, e nessa casa ficarão os que amámos e nos amaram, um velho casaco militar, a mesa a que não voltaremos. Não há cu ideológico que substitua tanta pena, saudade e dor.

Este artigo foi originalmente publicado no jornal português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *