O uso não raro inescrupuloso dos meios para se chegar ao fim, a apropriação do Estado, a ditadura do pensamento único e a consequente patrulha, práticas recorrentes entre os regimes fascistas, estão em voga. Os dois candidatos à Presidência da República que saíram do primeiro turno são, direta ou indiretamente, experts nesses hábitos. E tentam convencer o distinto público do contrário.
Mesmo diante da barbárie que a disputa eleitoral se tornou, com esfaqueamento de candidato de um lado e de eleitor de outro, intolerância absoluta e agressividade nas alturas, é difícil crer em um Jair Bolsonaro como um manso pregador da paz. Assim como é absolutamente inverossímil a postura de democrata bonzinho de Fernando Haddad, tendo por trás dele o PT em fúria. Não basta mudar as cores e a logotipia.
Ao longo da campanha, Bolsonaro foi um ativista da violência, e o PT, ainda antes de ter Haddad como preposto de Lula, não deixou por menos. O horror da suástica cravada na pele de uma simpatizante do #EleNão é tão repugnante quanto o traumatismo craniano provocado por dirigentes petistas em um manifestante anti-PT, na frente do Instituto Lula, em abril deste ano.
Os dois candidatos fazem agora juras à Constituição e à democracia, mas não tiveram qualquer escrúpulo de incluir em seus programas de governo a convocação de uma Constituinte, popular ou de notáveis. Muito menos demonstram respeito pelas instituições, em especial a Justiça. Bolsonaro quer retirar poderes do Supremo ampliando, à lá Venezuela, o número de excelências com assento no STF. E o PT, que há meses tenta desacreditar o Judiciário interna e externamente, incluiu a própria Venezuela no programa, criando exuberâncias como comissões populares de controle da Justiça e, óbvio, da mídia.
Nada como o ódio à mídia – traço incontestável dos regimes totalitários – une mais os que se dizem opostos. Bolsonaro, que se vangloria de defender a liberdade de opinião e de repudiar qualquer controle, chama a imprensa de lixo e pede a seus correligionários para que não atendam aos jornalistas. Nas redes, faz terrorismo, denegrindo formadores de opinião com notícias falsas. O que fizeram com a jornalista Míriam Leitão foi um escárnio.
No PT, as mídias tradicionais são tidas como inimigas há tempos. Com direito a arrependimento de Lula e dos seus por não terem feito o controle rígido delas quando estavam no Planalto e gozavam de confortável maioria, ainda que comprada pelos Mensalão e Petrolão.
Antes de ser preso, sempre que podia, e até no último minuto, Lula esbravejou contra a “Óia, que destila ódio e mentira”, a TV Globo, vandalizada por militantes em Goiás e no Rio Grande do Sul, todos os jornais e revistas. Só se sentia confortável com os blogueiros amigos. Hoje, depois de o PT perder a liderança na divulgação de mentiras, acusa Bolsonaro de propagar notícias falsas nas redes, o que é verdade. Mas continua querendo que também pareçam verdadeiras troças como a de que o adversário vai confiscar a poupança.
Apropriar-se do Estado para buscar a hegemonia de um partido no poder é tão indecente quanto imaginar o mando absolutista de um general. “Tomar o poder” é diferente de ganhar a eleição, como bem disse o petista José Dirceu. Do outro lado, armar a população e deixar matar não poderia ser política de Estado. Muito menos permitir que os direitos humanos sejam violados em nome dos “direitos das vítimas”, como o programa de Bolsonaro preconiza.
Isso posto, temos que ambos carregam na veia o viés do fascismo, palavra-chave desta eleição, ainda que muitos que a usem não saibam o significado, a dureza e a profundidade dela.
Os verdadeiros democratas – os 69% que preferem a democracia, de acordo com o Datafolha – vão ter muito trabalho pela frente. Não importa quem vença, terão de impedir arroubos autoritários, retrocessos comportamentais e políticos, abusos. Vão ter de usar o Congresso e a Justiça, todos os recursos institucionais e as ruas.
Afinal, como a história recente do país demonstrou, o presidente da República pode muito, mas não pode tudo. Ao fim e ao cabo, a sustentação da democracia depende de cada um de nós, e isso vai além do dia e do ato do voto. Sempre foi e continuará sendo assim.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 14/10/208.