São São Paulo mon amour

Tive surtos de paixão pela minha cidade, vários, ao longo do domingo inteiro – e é uma sensação maravilhosa, inebriante, ao mesmo tempo suave e acachapante.

A expressão “minha cidade” terá que ser esmiuçada neste texto, mas gostaria de começar pela figura “surtos de paixão”. Não é algo muito fácil de definir. Todo mundo sente, é claro, algumas vezes – e talvez uma medida da felicidade na vida seja o número de vezes com que cada um de nós passa por essa experiência. Uma pontada forte de alegria, de contentamento, de um tipo de plenitude. Tudo na vida é passageiro, a começar pela própria vida, e ataque de paixão é rápido demais – é muito agudo, como uma aguda dor de dente que passa logo, só que em sentido contrário, é claro. É algo como o gozo.

Tive o primeiro surto de paixão profunda por São Paulo quando saí do táxi, antes de 7h30 da madrugada (eu, que quando acordo cedo demais acordo às 10 e tanto da manhã), e olhei para o Ibirapuera, o lago, as árvores, aquela beleza absurda, assustadora, emocionante.

Os carros não podiam continuar em frente pela Avenida Pedro Álvares Cabral, eu tinha mesmo que sair do táxi, e não tinha idéia de onde era a chegada da The Color Run, a corrida de que Mary estava participando, com largada às 7h. Fiz perguntas para umas três pessoas, alguém falou “Obelisco”, e aí caiu a ficha – claro, Mary tinha mesmo falado no Obelisco, simples, era só seguir em frente.

Porra, meu, como pode São Paulo ser tão absolutamente linda às 7h30 da madrugada?

Foi facílimo achar o local em que, depois da chegada, os participantes da corrida de 5 mil metros passariam para receber o kit de saída – medalha, água, frutas.

Ao me encostar no gradil colocado para The Color Run, ao ficar olhando as hordas de pessoas que vinham chegando depois de ter corrido 5 mil metros na manhãzinha no domingo, pensei em quantas centenas de pessoas estavam envolvidas na organização daquele evento – e fiquei observando os rostos, os jeitos, os modos dos paulistanos atletas amadores anônimos.

Naquele momento, olhando ali aquelas pessoas que passavam por mim às dezenas, dezenas, dezenas  – no total, eram milhares, no mínimo 3 mil participantes –, me deu um ataque de paixão por São Paulo tão forte que até doeu.

Pensei na coisa da metrópole, da cidade super grande. Metrópole, cidade grande demais é um troço que traz tanta coisa ruim, violência urbana, insegurança, trânsito pesado, deslocamentos que demoram demais – mas, cacete, tem também suas compensações. Metrópole nos dá coisas que só elas mesmas podem nos dar.

Me passou pela cabeça o show de Simon and Garfunkel no Central Park em 1981 – aquele meio milhão de pessoas urrando de alegria só porque o nome da cidade delas era falado no meio de uma música. Nem foi à toa a lembrança: enquanto estava ali, apoiado no gradil, vendo as ondas de paulistas passando por mim depois de correr 5 mil metros, por uma coincidência deliciosa, ou não, tocou no meu iPod “The only living boy in New York”, e então ficou me passando pela cabeça essa coisa de metrópole, de ajuntamento tão grande, tão absurdo, tão improvável de milhões de pessoas num espaço tão pequeno, que resulta em que as pessoas acabam tendo uma paixão furiosa por sua cidade.

Sim, sofrem muito com a própria imensidão de gente concentrada, violência, trânsito, etc, etc, etc, etc – mas ao mesmo tempo morrem de paixão. E sentir paixão pela sua cidade é uma paixão gloriosa.

***

Várias horas depois, de tarde, caminhando pela Avenida Paulista sozinho, Mary em casa trabalhando, e a Paulista absolutamente tomada por dezenas e dezenas e dezenas de milhares de pessoas, teve um momento em que me lembrei de “My Hometown”, de Bruce Springsteen – e a evocação de uma pequena, talvez até bucólica pequena cidade natal me chocou. Não, não, não – São Paulo não é my hometown.

Não é a minha cidade natal. É a da minha filha. É da minha neta – mas não é a minha. Demorei demais para chegar até ela.

Minha filha nasceu no Morumbi, minha neta nasceu a uma quadra da Paulista, mas eu, diacho, eu nasci longe pra cacete. Sou um imigrante – um alien. Cheguei aqui como chegaram aos Estados Unidos os imigrantes que colonizaram o país. Aos Estados Unidos, ao Canadá, à Austrália, a Honduras, San Salvador, Peru, Venezuela, Panamá. Ao Brasil. Até mesmo à Argentina, embora os argentinos insistam em acreditar que eles são descendentes diretos apenas dos mais perfeitos lordes ingleses.

Em muitas das vezes em que ando pela Paulista tenho essa coisa de surto de paixão por São Paulo – em especial aos domingos, nos últimos anos, agora que a mais bela avenida da cidade pertence só às pessoas, sem carros, sem ônibus, aos domingos.

Andar pela Paulista de tarde no domingo confirmou e reavivou o ataque de paixão que já tinha tido seguidas vezes de manhãzinha, junto do Ibirapuera.

“São Paulo é como o mundo todo”, Caetano cunhou, e só por isso ele já deveria ser respeitado como gênio, mesmo se ele não tivesse feito “Sampa”, um dos mais belos hinos de amor a São Paulo.

Diante de mim, junto da parada Kit Pós de The Color Run, e ao meu redor, ao longo da Paulista, eu via de tudo – e me dava uma imensa alegria tanta pluralidade, tamanha diversidade. Velhos, jovens, gordos, magros, feios. Moças sem graça, moças lindas. Peles claras, peles mais morenas, peles ainda mais morenas, peles bem escuras. São Paulo é como o mundo todo, o mundo todo cabe em São Paulo, e aqui convivemos todos, de todos os tons de pele, de todos os tipos de opção sexual, de todos os tipos de crença, como a gente vê na Paulista – todos os tipos de tribos, todos os tipos de ideologia.

A caminhada pela Paulista na tarde do domingão em que vi Mary ganhar medalha por correr os 5 mil metros da Color Run me fez lembrar da Venice Beach que conheci em 1981.

Fiquei absolutamente chocado com a beleza da fauna humana quando passeei naquela tarde de domingo, com um grupo de colegas jornalistas que incluía Janete Gutierre e Alfredo Rizzutti, pela Venice Beach, um pedaço especial da segunda maior metrópole americana. A gente ainda vivia aqui na ditadura, eu tinha vivido na ditadura desde os 14 anos de idade – e então, para mim, aquele espetáculo de absoluta liberdade foi uma coisa chocante, maravilhosa, um ataque furioso de paixão pela vida. Todo tipo de louco, de pirado, de não convencional vivia e se exibia e ficava numa boa em Venice Beach…

E não é que assim a Avenida Paulista aos domingos?

A expressão perfeita de metrópole.

Loucos de todos os tipos. Sãos também, é claro, aos milhares – mas, entre eles, no meio deles, loucos de todos os tipos.

Tinha, por exemplo, nego dizendo que faria hipnose grátis. Tinha uns quatro ou cinco grupos que queriam explicar o sentido da vida – cada um com sua tese, naturalmente. Entre os sãos, tinha o MBL, tinha o Vem Pra Rua. No meio de tanto louco, provavelmente havia até mesmo quem defende golpe militar; tive a sorte de não ver nenhum, mas diacho, se tem espaço pra todo tipo de louco, por que esses loucos idiotas não teriam o direito de estar lá?

***

Sou um sujeito pouco dado a viagens. Tive, no entanto, a sorte grande de ter conhecido várias das cidades pelas quais tenho admiração: Londres, Paris, Nova York, San Francisco, Toronto, Montreal, Santiago, Buenos Aires, Montevidéu… Faltaram muitas, é óbvio. Não fui a Lisboa, Madri, Barcelona, Dublin, Moscou, St. Petersburg, Praga, Chicago… Nossa, a lista seria interminável. Mas conheci muitas das que eram as que mais queria conhecer.

Não trocaria nenhuma delas – nem das que conheci, nem das que só sei de fotos e filmes – por São Paulo.

Se pudesse escolher, se me fosse dada a possibilidade de escolher, optaria por São Paulo.

Ah, gostaria demais de passar vários meses em muitas outras belas cidades. E, não, não pensaria primeiro em Paris, Nova York ou Londres, mas talvez em Santiago, Montevidéu ou Lisboa.

Mas se tiver que escolher, sou partidário da cidade que escolhi para viver.

Uma moça que conheci uma vez dizia que não gostava de São Paulo. Era do interior do Estado, e morava numa cidade próxima a São Paulo, e dizia que não gostava de São Paulo, e tinha sido forçada pelas circunstâncias a ter que ir para São Paulo para trabalhar.

Coisa esquisita: há gente que se sente mal porque é obrigada a ir para uma outra cidade que não é a sua hometown.

E há muita gente que recusa que gente de fora venha morar em sua hometown.

Eu ano que vem vou fazer 50 anos de São Paulo, e tenho surtos de paixão pela cidade que escolhi para viver.

Ela me recebeu bem, quando cheguei aqui, meio século atrás, com uma mão na frente e a outra atrás. Me deu oportunidades. Eventualmente, permitiu que eu conhecesse a moça mais fascinante que havia no pedaço. E aí me deu minha filha, me deu minha neta, paulistaninhas paulistaníssimas, da gema.

Agora volta e meia saímos Mary e eu caminhando pela cidade, cada vez num bairro, numa região. A cada passeio sinto ataques de paixão – pela companheira e pela cidade.

Na canção em que diz que São Paulo é como o mundo todo, Caetano diz que no mundo um grande amor perdeu.

São Paulo é como o mundo todo e no mundo grandes amores achei.

27/8/2017

A foto da Paulista é de Junior Lago/UOL. As outras duas, claro, são minhas. 

2 Comentários para “São São Paulo mon amour”

  1. Eu a amo, também, demais da conta, e de longa data, desde que saí de BH e aqui aportei, em janeiro de 1.958. Salve, salve, salve São Paulo!

  2. Amigos,
    paulistano, nascido em São Paulo (no Parque São Jorge, a dois quarteirões da sede do Corinthians, portanto na Terra Santa, segundo Elói Gertel), me dou conta de que pouco tenho ido à cidade, como dizíamos,- ao pedaço que eu gosto, o centro velho. Morar em Guarulhos foi bom, mas sem dúvida me afastou da cidade.
    Agora vejo essa demonstração de amor brilhantemente expressada pelo Servaz, e endossada pelo grande Melchiades, e fico com um certo remorso.
    Tomei a decisão. Vou ao centro, a passeio, sem compromisso. Desço no metrô República. A realidade, aqui, é diferente daquela das estações da Paulista, mas guarda minhas lembranças da adolescência, e de inúmeras matérias que fiz.
    Depois, se sobrar algum fôlego da caminhada, ofereço ao 5OADT um relato da aventura…

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