A crise, por si só já suficientemente grave, está a um passo de se transformar em crise de autoridade.
Policiais militares em alguns Estados do Brasil cruzam os braços, escondem-se sob as saias de suas mulheres, oficiais e soldados são revistados por paisanas para verificar se estão saindo dos quartéis com a farda escondida.
Nessa quebra de hierarquia e disciplina, alguns pulam o muro da guarnição ou são transportados de helicóptero para burlar os piquetes.
No mundo real, 140 pessoas foram assassinadas no Espírito Santo, piquetes se espalharam para os quartéis do Pará e do Rio de Janeiro. Indefesa, a população vive dias de terror e sofre as consequências da incúria governamental.
Como se não tivesse nada com isso e vivesse em universo paralelo, o mundo da política rasgou a fantasia. Entrou em ritmo carnavalesco frenético, com nítido propósito de auto-blindagem e de abafar a Lava-jato.
Enquanto a nação, horrorizada, tomava ciência dos assassinatos por atacado no Espírito Santo, parlamentares tramavam a aprovação em regime de urgência de uma lei de anistia para os partidos que subtrairia poderes de punição da Justiça Eleitoral.
Dois dias depois, a sabatina training numa chalana gourmet foi mais uma clara evidência de que Brasília perdeu inteiramente o senso de medida e a compostura nestes dias pré-carnavalescos.
Tanto assim que o ministro-chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha, confessou sem a menor cerimônia que o “notável” Ricardo Barros foi nomeado ministro da Saúde depois do Partido Popular garantir que “todos os votos do partido” ficariam a favor do governo, num toma lá dá cá explícito.
A marchinha “A criminalização da política” cantada pelo senador Edison Lobão, novo presidente da Comissão de Constituição e Justiça, é de deixar pasmo qualquer folião.
Na sua letra há protestos contra a “tirania” da Lava-Jato que “se transformou num inquérito universal”, contra a “perseguição aos políticos”, contra a delação premiada, e a favor da defesa da anistia a caixa dois e da lei do abuso de autoridade.
Lobão não é do bloco “do eu sozinho” – ao contrário.
No mesmo compasso vai o nome dos sonhos do PMDB para o Ministério da Justiça, o deputado Rodrigo Pacheco, um crítico radical ao poder investigativo do Ministério Público.
Capitaneado pelo PMDB, o cordão Unidos pelo Patrimonialismo é suprapartidário, vai do PT ao PSDB, da base governista à oposição.
Face a aversão da sociedade ao ritmo atravessado dessa bateria, o presidente Michel Temer procurou se distanciar do bloco dos sujos e malvados, afirmando solenemente que no seu governo não haverá blindagem.
Na leitura cor de rosa, sua decisão de afastar temporariamente ministros formalmente denunciados e transformar o afastamento em definitivo quando eles virarem réus é um sinal positivo.
Na leitura mais realista, aprofunda a blindagem, pois aposta na morosidade da Justiça que tende a ser soterrada pelo ritmo dos acontecimentos. Como dizia Ulysses Guimarães, sua excelência o fato, costuma falar mais alto. E ele tem nome e RG: delações da Odebrecht.
O presidente é prisioneiro das próprias contradições do seu mundo, daí o seu comportamento pendular.
De um lado, dá passos que alimentam às desconfianças da sociedade, como no episódio Moreira Franco e na própria escolha de Alexandre de Moraes para o Supremo. De outro, tem tido a sensibilidade de recuar quando a pressão da sociedade se faz mais forte. Foi assim nas demissões de Romero Jucá e Geddel Viera Lima.
Como o mundo da política vem exagerando na farra, Michel Temer deve fazer novo movimento para refrear sua voracidade. Dificilmente a pretensão do deputado Rodrigo Pacheco vai dar samba.
O presidente tem fortes vínculos com o cordão dos patrimonialistas, a quem deve solidariedade, mas é, antes de tudo, um político pragmático.
Está de olho no dia 26 de março. Teme a força das multidões, prontas para botar o bloco na rua.
Nós não brincamos com a democracia nem com a vida das pessoas.
O que vivemos hoje é resultado da nossa crise institucional. A falta de normas para reger minimamente as instituições democráticas do Brasil fez com que elas começassem a funcionar em uma lógica de independência quase completa de qualquer regulação. E isso passa a ser reproduzido em todos os níveis.
O fato de parlamentares derrubarem uma presidenta sabendo que não há justificativa fundamentada para isso; ou do judiciário agir de maneira arbitrária e sem o mínimo de previsibilidade jurídica, faz com que as instituições acreditem em sua potencialidade autônoma e impermeável em relação às leis.
Quando, naquele momento, criticamos o judiciário e o legislativo por ultrapassarem os limites do que lhes cabe era justamente por entendermos que o cenário a seguir seria justamente este que estamos vivendo: caos completo; instabilidade social e institucional; e agravamento da crise financeira.
O impeachment nunca foi o fim. Ele foi apenas o começo de um tempo muito difícil para nós.