A troca de guarda nos Estados Unidos põe o mundo diante duas utopias neste início do século XXI. Ambas se apresentam como respostas às mazelas da Terceira Revolução Industrial e aos desafios da era pós globalização.
A seu modo, o presidente que se recolhe ao fundo do palco, Barack Obama, e o que vem para o primeiro plano, Donald Trump, expressam essas duas visões. Uma é o passado e a outra é o futuro.
O problema é saber quem é quem para identificar quem está em sintonia com as tendências da Quarta Revolução Industrial, fenômeno tão irreversível como foram as revoluções anteriores.
Se os ex-presidentes americanos Ronald Reagan e Bill Clinton foram os beneficiários diretos dos anos dourados da globalização – a ponto de ao final de seus governos gozarem de popularidade altíssima, 60% e 65%, Obama teve de governar em uma globalização em crise. Mesmo assim, terminou seu governo com 56% de aprovação. Diga-se de passagem que Donald Trump chega à Casa Branca com o índice mais baixo de aprovação dos últimos sete presidentes, na época de sua posse.
O deslocamento do emprego, as ondas migratórias desordenadas, a concentração das riquezas e a concorrência geraram um quadro adverso.
Para se ter idéia do tamanho do problema, nos Estados Unidos a renda dos mais pobres está estagnada desde os anos 80, enquanto os ganhos dos mais ricos aumentaram no mesmo período. Nos anos 50, cerca de 30% dos americanos trabalhavam na indústria. Hoje são apenas 8%, segundo Náercio Menezes Filho, coordenador do Centro de Políticas Públicas do Insper.
A desigualdade se manifesta na qualidade do emprego. Os mais ricos e mais escolarizados encontram vagas nos segmentos modernos da economia e nas grandes cidades, enquanto para os outros extratos sociais há vagas de baixa qualificação, com remuneração bem menor que o emprego industrial.
Isto explica por que, apesar de Obama ter tirado o país da crise e de existir uma situação hoje de pleno emprego (desemprego abaixo de 5%), os americanos preferiram Trump.
Esses problemas podem se agravar com o advento da chamada Revolução 4.0, marcada pela fusão de tecnologias digitais, físicas e biológicas. Ela provocará mudança radical no mundo industrial e no mundo do trabalho. Esse processo tem potencial de eliminar 47% dos postos de trabalho. Isso não é miragem, é o mundo daqui a pouco. A Conferência Davos/2017 já se debruça sobre a substituição dos trabalhadores por robôs em fábricas inteiramente automatizadas.
O novo presidente dos Estados Unidos pretende enfrentar essa realidade por meio de uma utopia regressiva, de retorno à Segunda Revolução Industrial, pela reedição do espírito de Yalta, com a divisão de “esferas de influência” dos Estados Unidos e da Rússia, e com a exclusão da Europa Ocidental.
A questão é saber se é possível frear o desenvolvimento das forças produtivas, se é possível fazer os “Estados Unidos voltar a ser grande” pela via de construção de muros e de tarifas protecionistas, como quer Donald Trump.
Protecionismos e guerras econômicas sempre geram ineficácia e atraso tecnológico. Se efetivados, levarão à perda de um dos maiores ganho da globalização, o barateamento dos produtos e sua democratização.
E não resolvem. Estima-se que 80% dos empregos perdidos se deram em consequência da automação e apenas 20% como decorrente por transferência de fábricas no mundo.
O cinturão da ferrugem dos EUA não voltará a ser o mesmo da linha de produção. Não é possível voltar aos tempos do carburador.
No mundo em que cada vez mais o robô substituirá o homem, a utopia factível é a expressa no discurso de despedida de Obama, uma peça histórica do mesmo patamar do discurso “Nós, o povo”, de Ronald Reagan.
O presidente que sai de cena reconhece o crescimento da desigualdade e propõe um novo pacto social “pois, se não gerarmos oportunidades para todas as pessoas, os desafetos e divisões que paralisaram nosso progresso vão apenas se intensificar nos próximos anos.”
Eis o dilema a ser resolvido: como garantir a sobrevivência de uma maioria marginalizada do mercado do trabalho? A bandeira da repartição da riqueza de uma forma mais equitativa tende a ser o grande valor do século XXI a ser perseguido, assim como a democracia o foi no século passado.
Está claríssimo, portanto, quem é o passado e quem é o futuro.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 18/1/2017.