Só há um papa, Anthony Quinn. O cinema não é só melhor do que a vida, o cinema antecipa a vida. Em As Sandálias do Pescador, filme da minha infância, Quinn fundia a bondade de João XXIII com o intervencionismo de João Paulo II e com o generoso desassombro de Francisco. Quinn era um bispo libertado de um gulag soviético. Chega a papa e salva a humanidade de uma guerra nuclear.
Não sei se os olhos de Quinn chegaram a ver Deus. Ninguém no mundo está mais habilitado a ver Deus do que o homem da batina branca. O solidéu singelo e a sotaina branca conferem-lhe uma elegância confortável e simples. Se queremos ver Deus, é assim que nos devemos vestir. E calçar uns sapatos vermelhos.
A pensar em Quinn, lembrei-me de um conto de Giovanni Papini, história de um dissimulado apóstata eleito papa. Eleito, caminha para a varanda que se abre sobre a multidão que, em fé e pela fé, exulta e reza. Esse papa iconoclasta vem pronto a denunciar a gigantesca impostura que é a religião.
Dá o primeiro passo, discurso na ponta da língua serpentina, mas a alegria e a fé da multidão entram nele como luz que lava os olhos a um cego. O apóstata converte-se e já o habita o Pai, o Filho e o Espírito Santo.
Quinn discutia a fé com um padre que era a cara do teólogo Teilhard de Chardin. Diziam um ao outro o que não podiam dizer a ninguém. E se o papa, talvez o único homem que pode ver Deus, soubesse, como mais nenhum homem sabe, que Deus não existe? Porque mais nenhum homem sabe, como este homem sabe, que o Deus a que um milhão de fiéis se ajoelha no Vaticano, esse Deus patriarcal, a correr, bombeiro, de prece para prece, entretido a vingar-se, a acusar, a salvar, castigo numa mão, a misericórdia na outra, nenhum milagre o fará existir. Séculos de teologia e Teilhard de Chardin dissiparam essa nuvem, essa luz que cegou Paulo. Como ontem Quinn, também hoje Francisco sabe. Porém, sorriso a sorriso, Francisco acredita.
Que insustentável fragilidade! A tristeza gentil do olhar e o maravilhoso sorriso de conto de fadas sustentam uma civilização, uma reconfortante forma de ver, sentir e viver o mundo. Bastava que este homem dissesse uma só palavra e a multidão correria desvairada, em uivos apocalípticos…
Vivemos a uma palavra do caos, de um triunfal niilismo. Nessa insustentável fragilidade reside a mais insustentável beleza. E um filme por fazer.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
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Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.