Somos todos Cary Grant. Já vamos a meio do filme e ainda não sabemos em que história estamos enfiados. Nem sequer que personagem andamos a representar.
Foi o que, para deleite de Hitchcock, Cary Grant lhe disse, já as filmagens de North by Northwest iam a mais de meio. A cara de Hitchcock abriu-se no doce sorriso de quem mete o dente a uma rabanada no Natal. O filme, que chamámos e bem Intriga Internacional, era mesmo sobre essa confusão. Que o actor Cary Grant estivesse completamente perdido só acrescentava autenticidade a uma intriga que faz, nesse filme de 1959, inveja à pós-verdade que nos arrastará por maus caminhos em 2017.
Os factos são límpidos: Cary Grant é, como só Cary Grant podia ser, um publicitário, um homem do marketing. E, se fosse hoje, podia até ter desenhado a campanha de Obama, só não podia, por se vestir tão bem, ter feito a de Trump.
Facto: Cary Grant é, no filme, um publicitário bon vivant. Mas as outras personagens de Intriga internacional não querem saber de factos. Por pura emoção – medo conspirativo, calculismo e manipulação –, duas partes em conflito, os espiões comunistas e a CIA, colam-no à inventada personagem de um agente na clandestinidade, envolvendo-o em rocambolescas perseguições que talvez lhe venham a custar a vida. E mesmo a opinião pública, essa distraída tia de Cascais que faz de mãe dele, deixa de acreditar no filho, nos veementes protestos e denúncias dele. Face à pós-verdade que são as mentiras dos espiões comunistas e da CIA imperialista, as verdades que o filho conta são maravilhosas anedotas, que fazem rir a adorável mãe e convertem Intriga Internacional numa obra-prima da comédia. Ou seja, quando verdades e mentiras estão tão bem misturadas como os ingredientes de um molho vinagrete, não há nada mais cómico do que dizer a verdade a um incrédulo. É o que Cary Grant descobre ao dizer a verdade à mãe ou a ingénuos polícias de rua.
Hitchcock confessou ter tratado o público do filme como se fosse um órgão gigante em que tocava uma nota e obtinha uma reacção. “Um dia, continuou ele, nem precisaremos de fazer um filme – implantamos-lhes eléctrodos no cérebro e eles gritam ‘ooooh’ e ‘aaaah’ e assustam-se e riem-se conforme o botão em que carregarmos. Não será maravilhoso?” Irá a vida, em 2017, roubar o filme que Hitchcock imaginou em 1959?
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.