A metáfora não tem relação direta com a recente viagem de Michel Temer à Rússia, mas a situação brasileira lembra bem a boneca russa, com uma boneca dentro da outra. No nosso caso, a cada crise que se destampa há outra dentro dela.
A boneca-mor é um governo sitiado, com linha de defesa frágil para enfrentar a artilharia pesada que se abate sobre sua paliçada. O mais recente bombardeio foi a denúncia do procurador Geral da República, Rodrigo Janot, contra Temer, antecedida pelo Datafolha com péssimos resultados para o governo, e do petardo disparado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em seu último artigo. E tudo em três dias. Haja adrenalina!
O próprio governo é uma matrioska, com suas sucessivas crises. No tempo de Dilma Rousseff, a crise econômica impulsionou as demais. Com Temer, a crise política sobrepujou-se a todas elas, adquiriu vôo próprio. Exatamente por isso, a incipiente retomada econômica não serve de refrigério para o presidente.
O teatro de operações é a política. Temer se movimenta não mais para entrar na história como o condottieri da travessia e sim para sobreviver a qualquer custo. É difícil exigir gesto de grandeza de quem pode sair do Palácio do Planalto para enfrentar a Justiça sem o foro privilegiado, suspeito de malfeitos como o de ter praticado corrupção passiva e alvo da fúria cada vez mais intensa de seus adversários.
Temer pode sobreviver ao sítio, mas a preço altíssimo. Por meio de pacotes da bondade, do balcão de negócios no Congresso Nacional, de rebaixamento das reformas trabalhista e previdenciária.
Aí será mais crise dentro da crise.
O mercado, que ainda tem expectativas positivas quanto ao seu governo, pode operar no sentido contrário ao sentir o abandono do programa das reformas e da austeridade fiscal.
Mesmo se presidente lograr êxito em barrar na Câmara Federal o pedido de abertura de inquérito contra ele, a crise não vai diminuir. Há um exemplo histórico a ser relembrado. Para inviabilizar a emenda das Diretas Já, o regime militar fez com que 112 parlamentares se ausentassem do plenário. Isso não evitou sua agonia. Sua base de sustentação cindiu-se, e a ditadura chegou ao fim com a eleição de Tancredo Neves.
São tempos diferentes, mas aqui nossa boneca russa revela outra crise, a erosão do centro.
Não nos falta apenas um Tancredo Neves. Falta um centro aglutinador, com estratégia clara. A força que poderia ser a mola propulsora desse campo, o PSDB, está emaranhado em suas contradições internas, não conseguindo, sequer, equacionar o passivo ético de seu presidente licenciado.
Há uma crença de que o centro se salvará por osmose. Bastaria uma aliança PSDB-PMDB em 2018. A máquina estatal nas mãos dos dois partidos somada ao tempo televisivo tornaria imbatível um candidato dessas forças. De novo é bom recorrer a exemplos históricos.
Em 1989 a candidatura Ulysses Guimarães estava respaldada por um PMDB mastodôntico, com 22 governadores e a maioria de senadores e deputados, mas, como estava identificada com o fracasso do governo de José Sarney, deu vexame nas urnas.
Quando se pergunta a um soldado, sob fogo cerrado da artilharia inimiga, qual o pior bombardeio que já viveu, ele sempre responde: o mais recente. Assim acontece com as crises. Para quem as sente na pele a pior é sempre a última. A crise de Dilma vai deixando de ser a última…
Não há crises eternamente sem respostas. Basta saber ler as pesquisas de intenção de voto. A atomização do centro já está levando água para a polarização Lula-Bolsonaro. Concretamente, fortalece os extremos e suas propostas regressivas. Subestimá-los é um erro primário.
No Brasil de hoje existem apenas dois políticos com visão estratégica e que se movimentam no teatro de operações de forma sofisticada. Um é Lula, que começa a se reposicionar no tabuleiro para atrair forças atrasadas e patrimonialistas duramente afetadas pela Lava Jato. Que ele é “derrotável”, não temos dúvidas. Mas quem é “ganhável”? – eis a questão.
O outro é Fernando Henrique Cardoso. Engana-se quem atribui seus últimos movimentos ao peso da idade ou a preocupações com a sua biografia. Ainda não é possível descortinar inteiramente qual estratégia está por trás dos seus movimentos, aparentemente ziguezagueantes.
Uma hipótese é que o ex-presidente esteja prevendo um agravamento da situação de tal ordem que coloque as “soluções aleatórias”, para usar uma expressão de um analista de pesquisa que conhece muito bem o modo de raciocinar de FHC, como um dos cenários possíveis. Nesse caso, a antecipação da eleição seria o meio de se evitar desfechos mais graves fora da institucionalidade, uma vez que nos seus cálculos estaria a certeza de que Temer não chega a 2018.
Subsidiariamente, o ex-presidente estaria fornecendo discurso para seu partido sair do governo, caso seu apelo não seja aceito por Temer. O PSDB poderia, assim, se dedicar à reaglutinação do centro democrático.
De certo, apenas uma constatação. Dentro dessa Matrioska as bonecas parecem infinitas – ainda tem muita crise para vir à luz do dia.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 28/6/2017.