“Olha para ti, Dreyfuss, só comes e bebes, és gordo e desmazelado. Nessa idade, é criminoso. Nem dez flexões de braços fazes.” Era o que, nos dias de maior cortesia, Robert Shaw, actor shakespeariano, dizia ao jovem americano Richard Dreyfuss, que Spielberg escolhera para o papel de cientista marinho em Jaws.
Shaw podia pôr nos olhos uma faúlha facínora e, ao mesmo tempo, na boca um esgar sarcástico. No cinema, fora assassino, coronel autoritário, sequestrador. Conheci-o, no Avis, em Luanda, era ele o impiedoso Henrique VIII de A Man for All Seasons – separando-lhe a cabeça do corpo, lixava a vida ao decoroso e utópico Thomas Morus. Em Jaws, foi Quint, o monofanático caçador de tubarões. Votava ao tubarão o negro ódio que o capitão Ahab derramava sobre a branca Moby Dick.
Antes de fazer a vida negra ao tubarão, Shaw fez a vida negra a Dreyfuss. Era um cavalheiro quando não bebia, mas um copo, jura Dreyfuss, “convertia-o no mais competitivo filho-da-puta.” Ora, Shaw acordava às quatro da matina para um matabicho regado pela lendária aspereza do bourbon Wild Turkey. Às cinco, levava o corpanzil à maquilhagem, onde o acalmavam a martinis. A seguir, caía em cima de Dreyfuss com o que de amargo lhe viesse à boca: que nunca pusera os pés num palco, que era só maneirismos, que o desafiava a atirar-se ao mar do mastro do barco onde filmavam.
Vejam, Shaw entra no set ainda com um copo na mão. Faz uma vozinha de gozo: “Ajuda-me, Dreyfuss, ajuda-me!” Ai, queres que te ajude e Dreyfuss arranca-lhe o copo da mão e espatifa-o contra a parede. Fez-se um silêncio de morte. Até os estilhaços de vidro ficaram suspensos no ar. Shaw não abriu a boca. Agarrou numa agulheta de incêndio e, off-camera, esteve com ela apontada à cabeça de Dreyfuss na cena que ele filmou a seguir. Aquilo ficou negro, garante Spielberg.
E veio a cena em que Shaw conta o afundamento do USS Indianapolis e o ataque dos tubarões. Foi o próprio Shaw que escreveu o texto, magnífico. A empatia que se cria entre as personagens inundou a vida real e Shaw prometeu a Dreyfuss que fariam Shakespeare juntos. O álcool e um ataque de coração impediram-no de cumprir a promessa.
Na Irlanda, quando encontrou na televisão a neta de Shaw, Dreyfuss verteu em lágrimas a admiração que tinha pela ciclópica grandeza dele.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Jaws no Brasil é Tubarão. A Man for All Seasons é O Homem Que Não Vendeu Sua Alma.