Belchior

Belchior não chegou sozinho ao palco da música brasileira. Bem ao contrário. Veio ao mesmo tempo que um bando de outros compositores e cantores: Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Raimundo Fagner, Ednardo, Walter Franco, Gonzaguinha, Luiz Melodia.

Os dois primeiros da lista, Alceu e Geraldinho, estrearam dividindo um disco em 1972, Quadrifônico. Fagner, Ednardo, Walter Franco, Gonzaguinha e Melodia lançaram seus discos de estréia – todos eles – em 1973.

Foi a primeira nova geração da MPB depois daquela outra, a mais dourada de todas, a que lançou seus primeiros discos entre 1962 e 1967: Nara, Chico, Caetano, Gil, Milton, Edu, Bethânia, Gal, Roberto, Paulinho, Sidney Miller, Elis.

Naquela grande onda de 1973, Belchior entrou de carona com seu amigo Fagner: no primeiro disco deste último, o maravilhoso Manera, Fru Fru, Manera, havia duas canções assinadas pela dupla. “Moto 1” já trazia uma expressão que marcaria Belchior para sempre:

Eu preciso é disso mesmo

Que você diz que eu preciso

Uma cara mais alegre

E uma roupa colorida.

Os cearenses chegavam querendo roupa colorida.

A outra canção assinada pelos dois virou um clássico, uma beleza de clássico – “Mucuripe”.

Fagner estreou tendo as bênçãos de Nara, que gravou uma faixa com ele em Manera, Fru Fru, Manera, “Pé de Sonhos”.

Belchior teria as bênçãos de Elis. No seu show histórico, Falso Brilhante, e no disco antológico do mesmo nome, em que mudou o curso de sua carreira, flertando com a latinidade e aderindo pela primeira vez a um tom mais político, Elis cantou duas canções de Belchior, talvez as mais fortes, as mais emblemáticas de todas que fez, “Como nossos pais” e “Velha Roupa Colorida”.

Insolente, petulante, metido, o cearense bigodudo chamava para a briga todos aqueles deuses que citei no terceiro parágrafo deste texto – e também (por que não?) os que tinham chegado nos anos 60 do outro lado do Equador, Bob Dylan, Paul McCartney, John Lennon, Mick Jagger e quantos mais houvesse:

Hoje eu sei que quem me deu a idéia de uma nova consciência e juventude

Está em casa, guardado por Deus, contando o vil metal.

Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos

Ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais.

“Como nossos pais e “Velha Roupa Colorida simplesmente abrem Falso Brilhante, o disco de Elis de 1976.

O cara era insolente, petulante e metido, e chegou com tudo. Mexeu com a cabeça de uma geração inteira.

***

No embalo dessa bênção incrível de Elis, no mesmo ano de 1976 Belchior lançou o que seria a rigor seu primeiro álbum (houve um antes, mas ele simplesmente não aconteceu), Alucinação. Tinha as duas canções que faziam tremendo sucesso com Elis, e mais aquela que também o marcaria para sempre, “Apenas um rapaz latino-americano”.

Era de fato um jeito extremamente forte de entrar em cena.

E ainda tinha pelo menos três outras preciosidades, “A Palo-Seco”, a faixa-título “Alucinação” e “Como o diabo gosta”

“A Palo Seco” já havia sido gravada por Fagner no segundo álbum dele, Ave Noturna, de 1975:

Tenho 25 anos de sonho e de sangue

E de América do Sul.

Por força deste destino,

Um tango argentino me vai bem melhor que o blues.

Sei que assim falando pensas

Que este desespero é moda em 73.

E eu quero é que este canto torto

Feito faca corte a carne de vocês.

Na hora de gravar, ele atualizou a data para 76. Ficava mais uptodate e mantinha a rima.

“Como o diabo gosta” tinha o seguinte:

A única forma que pode ser normal

É nenhuma regra ter

E nunca fazer nada que o Mestre mandar.

Sempre desobedecer,

Nunca reverenciar.

***

Belchior realmente chegou brilhando forte demais, como uma supernova. As supernovas, parece, acabam perdendo a luz, a força, um tanto depressa – em termos de astronomia, é claro. E de fato quando vieram os anos 2000 Belchior andava sumido.

Não que só tenha feito canções especialmente belas no seu primeiro álbum. Eu, pessoalmente, tenho adoração por “Medo de avião”, “Comentário a respeito de John” e “Pequeno Mapa do Tempo”.

Eu tenho medo e medo está por fora

O medo anda por dentro do teu coração

Eu tenho medo de que chegue a hora

Em que eu precise entrar no avião

Eu tenho medo de abrir a porta

Que dá pro sertão da minha solidão

Apertar o botão: cidade morta

Placa torta indicando a contramão

Faca de ponta e meu punhal que corta

E o fantasma escondido no porão

Medo, medo. medo, medo, medo, medo

Eu tenho medo que Belo Horizonte

Eu tenho medo que Minas Gerais

Eu tenho medo que Natal, Vitória

Eu tenho medo Goiânia, Goiás

Eu tenho medo Salvador, Bahia

Eu tenho medo Belém, Belém do Pará

Eu tenho medo pai, filho, Espírito Santo, São Paulo

Eu tenho medo eu tenho C eu digo A

Eu tenho medo um Rio, um Porto Alegre, um Recife

Eu tenho medo Paraíba, medo Paranapá

Eu tenho medo Estrela do Norte, paixão, morte é certeza

Medo Fortaleza, medo Ceará

Medo, medo. medo, medo, medo, medo

Eu tenho medo e já aconteceu

Eu tenho medo e inda está por vir

Morre o meu medo e isto não é segredo

Eu mando buscar outro lá no Piauí

Medo, o meu boi morreu, o que será de mim?

Manda buscar outro, maninha, no Piauí. 

***

Em dezembro do ano em Raimundo Fagner, Ednardo, Walter Franco, Gonzaguinha e Luiz Melodia lançaram seus primeiros álbuns, eu me casei com Suely. Em 1975 ela nos daria Fernanda, e minha filha passou toda a infância ouvindo, tanto na casa da mãe quanto na do pai (a separação veio cedo), os mestres da MPB dos anos 30, os melhores dos anos 40 e 50, os da geração dourada dos 60 e estes mais novos.

Suely tinha um excelente gosto musical e conhecia MPB como pouca gente, e não faltou boa MPB na infância da nossa filha. Claro que nem tudo que a gente passa para os filhos é adotado por eles. Belchior nunca foi um dos preferidos da Fernanda. Na verdade, nenhum destes que vieram na época do meu casamento com a mãe dela: prefere os da geração anterior, Caetano, Gil, Chico, Milton, saltando direto para Legião e Marisa Monte. No entanto, mesmo não tendo especial ligação com Belchior,  ela me disse agora (eu não sabia) que adora “Medo de avião”.

Inês, que passou boa parte da infância vivendo comigo e brincando com Fernanda nos fins de semana e nas nossas férias, é 4 anos mais velha que minha filha, e 4 anos, na infância, fazem diferença imensa. Gosta de tudo de MPB – até mesmo de gente para quem a mãe, Regina, torceria o nariz, tipo Beto Guedes. Vivendo há décadas fora do Brasil, passou para Daya, a segunda dos três filhos, o gosto pela música brasileira. Daya adora “Como nossos pais” – e acho tudo isso uma maravilha, uma filha do coração que repassa as canções que ouviu criança para a filha, a filha que herdou o gosto pela MPB do pai e da mãe e está transmitindo tudo para minha neta.

Dos tempos em que as duas eram crianças e tocava muito Belchior em casa, guardei para sempre uma experiência. Um dia qualquer, pedi a Inês que fizesse uma determinada coisa, ou deixasse de fazer determinada coisa. A coisa em si claro que não me lembro mais o que era. Mas, em suma, eu pedia que ela me obedecesse.

Respondeu citando Belchior: “Nunca fazer nada que o Mestre mandar. Sempre desobedecer.”

Danadinha.

***

Faz muito, muito tempo, no entanto, que discordo de Belchior, e acho que não há problema algum em pensar e viver como nossos pais. Minha mãe tinha, por exemplo, abnegação, paixão por honestidade. Tenho imensa alegria de ter herdado isso, assim como outras características dela.

Acho que tanto Inês quanto Fernanda herdaram coisas de mim, e tenho imenso orgulho disso, e tenho mais orgulho ainda de ver que elas estão passando coisas que herdaram dos pais delas para os filhos.

Claro, Belchior queria marcar posição, realçar o conflito de gerações, a necessidade de cada geração lutar por seus valores, mostrar sua identidade.

E escreveu aquilo quando era jovem. A juventude, a gente sabe, é uma doença que o tempo cura.

30/4/2017

 

 

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