As lembranças tristes no espaço

É um belo Woody Allen, dos melhores. Um Woody Allen típico: observações argutas, inteligentes, espertas, sobre as relações humanas, as relações afetivas. São vários casais, a maioria de gente adulta, madura, aí na faixa dos 50 anos ou mais, todos de Nova York, intelectuais, artistas, pessoas sem problemas materiais.

A trama tem algo que faz lembrar Harry e Sally – Feitos um para o Outro/When Harry Met Sally (1989), de Rob Reiner, o que não é de se estranhar, já que esse novo clássico de Reiner e da autora e roteirista Nora Ephron é uma comédia romântica que tem muito a ver com o universo de Allen.

Tem também algo de Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (2004), o belo filme de Michel Gondry escrito por ele e Charlie Kaufman.

O próprio Allen está no belo elenco, que tem também Peter Bogdanovich, num papel importante – e Bogdanovich, excelente diretor de atores, tem uma belíssima atuação.

Corro o risco de dar um spoiler, mas adianto o tema básico do filme, o ponto central da trama: um dos personagens, exatamente o interpretado por Bogdanovich, descobre, por acaso, uma maneira de se livrar de uma série de objetos que fazem lembrar sua ex-mulher, juntamente com parte de sua memória – formas de evitar o sofrimento da saudade, da angústia de não ter mais a companheira que acreditava seria para a vida inteira.

O fantástico, o incrível, o mágico, é que ele faz com que aquelas lembranças e aqueles objetos – alguns livros, discos de que a ex-mulher gostava especialmente, um ou outro enfeitezinho de estante que ela esqueceu de levar quando foi embora – desapareçam de sua vida sendo enviados para fora do planeta, para além da atmosfera.

Os objetos e as lembranças incômodas do personagem viram lixo espacial.

E aí a moda pega. Num movimento como que orquestrado, a nível mundial, global, planetário – como acontece, por exemplo, em O Novíssimo Testamento (2015), do belga Jaco Van Dormael –, amantes abandonados passam a despachar para o espaço os pedaços de passado que os fazem sofrer.

Quando amantes abandonados do mundo inteiro estão felizes da vida, sem sofrer com as lembranças tristes, o personagem central, o que havia inventado a moda toda, reencontra a ex-mulher. Redescobrem o prazer de estarem juntos, e ele começa a planejar uma forma de desfazer o o desfazimento do passado.

Uma louca fantasia, fruto de uma desvairada imaginação. Mas, a rigor, nada que surpreenda, vindo de Woody Allen, um criador com um pé firme na magia, no mágico, nas coisas além do que constatamos com nossos parcos cinco sentidos.

Um beleza de trama, uma beleza de filme.

Só que não foi Woody Allen que a criou – foi um sonho que tive.

***

Numa noite de sono leve, na casa de Dona Lúcia, minha sogra, na véspera da viagem de volta para casa, sonhei que vi (ou revi, não tinha certeza) esse filme de Woody Allen – e acordei pensando nele, e tentando checar qual era. Qual era o título, em que ano tinha sido feito.

Pensei: bem, quando acordar de vez, quando levantar, vou checar isso.

Aí me ocorreu: e se isso que sonhei não foi um filme do Woody Allen, e simplesmente uma história que minha cabeça inventou no sonho?

Dormi de novo tentando continuar o sonho (a gente faz isso às vezes: eu, pelo menos, faço). Quando acordei de novo, fiquei com medo de esquecer o sonho: diacho, preciso escrever logo isso antes que eu me esqueça.

Tá aí.

3/11/2017

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