Crónicas atrás, ignorando-lhe o carpo, metacarpo, pus na minha mão direita o tarso, metatarso, que fui cruamente arrancar ao pé do mesmo lado. Ou seja, meti os pés pelas mãos. Não admira que me tenha estatelado na calçada molhada de Lisboa. Pois bem, podia chover a cântaros ou até cães e gatos, que a actriz e ginasta Debbie Reynolds, com os tarsos, metatarsos que tinha, jamais cairia.
Debbie cantou e dançou e por ela dançou e cantou à chuva Gene Kelly. No dia em que cantou e dançou o número “Singin’ in the Rain”, que dá título ao filme, Kelly tinha um febrão que nem Marcelo sairia de Belém. Mesmo assim dançou, sapatos castanhos e fato cinzento tão encharcados como o seu coração estava encharcado de amor à personagem de Debbie no filme. Mas nem Gene Kelly estava encharcado de amor à Debbie da vida real, que tratou com crueldade nas filmagens, obrigando-a a dançar até os pés sangrarem, nem a mim, apesar do eufórico e felicíssimo número que é o “Good Morning”, seria Debbie a levantar-me do chão de Lisboa.
Se alguém poria de pé a vítima da fome que todos somos, seria Cyd Charisse. Em “Singin’ in the Rain” ela aparece só em dois números musicais. Mas o que Cyd dança, seduz e fuma basta para oferecer aos nossos pasmados olhos a redentora visão da ressurreição dos mortos e a vida do mundo que há-de vir.
As altíssimas pernas de Charisse e a ditirâmbica forma como as move, dançando-as e dançando-nos com elas, só tem paralelo artístico no que o florentino Botticelli celebrou de Vénus e dessa Primavera que nem sempre em nós a cada ano renasce.
E talvez, se me ativer só às filmagens, eu me tenha enganado no pintor com que comparo Cyd Charisse. Talvez devesse falar de Courbet. Vejam, Walter Plunkett, o chefe do guarda-roupa, mandou parar as filmagens. O fato de banho de Cyd Charisse deixava ver, nos amplos e deliciosos movimentos dela, essa frondosa opulência que Courbet pintou na “Origem do Mundo”. Aflorava uma impertinência onde a cálida lisura devia reinar. Foram horas de paciência até Plunkett se sair com a frase que a história das artes guardará como um tesouro: “Está feito, rapazes, conseguimos lamber a virilha da Cyd Charisse.”
Fique o perfeccionista Plunkett a saber que não é por esse feito que o admiramos. Ao contrário do que ele pensa, são certas e impertinentes falhas técnicas que fazem a grandeza do cinema e da arte.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.