Só se pode matar quem é mesmo bom. Explico-me recorrendo à única ciência universal: a de que o cinema é que explica a vida.
Nenhum argumentista ou realizador podia matar Norma Shearer ou Joan Crawford, para falar só de vedetas da idade de ouro do cinema. Nem o público nem o dinheiro dos produtores deixaria. As grandes stars precisavam de um vestido de noiva, de uma igreja e de um happy-end. Mas a grandeza de Garbo era tanta que podia matar-se Greta Garbo. A uma actriz carregada de destino bastava um último suspiro e um caixão. Um parêntesis: antes de a garbosa sueca vir emudecer mais e melhor o cinema mudo americano, já o pai fundador, o realizador D. W. Griffith, matara a actriz Lillian Gish em Broken Blossoms, o mais lírico filme que o cinema já fez. Mas Gish era como Nossa Senhora, bem podia ascender aos céus, que logo voltaria a aparecer numa solitária azinheira.
Garbo morreu em Flesh and the Devil e em Camille, para dar só dois exemplos. Mas, actriz do mudo, a sua principal morte, pensou-se, seria tecnológica, com a chegada do cinema sonoro. Era preciso falar. Por causa desse ruidoso pormenor, acabaram as carreiras de dezenas de vedetas. Abriam a boca e morriam logo ali, abatidas por microfones do tamanho de uma sequóia.
Meio mundo preparou a certidão de óbito da Garbo. Lembre-se que ela tinha uma sórdida mancha no cadastro. Era sueca e o sotaque dela só podia ser catastrófico. O sonoro devia ter sido o fim da sua carreira. Filma, então, Anna Christie. Podia elaborar sobre a personagem que interpreta, mas abrevio: faz de puta. Vemo-la a entrar numa taberna. Chega-se ao balcão e diz: “Dá-me um whisky, a ginger ale à parte. E não sejas somítico, querido!” A voz gutural, a vir lá da origem do mundo, pôs a plateia que era o planeta em sobressalto. Quantos milhões de whiskies com ginger ale se pediram na terra inteira? Quantos Manéis de falinha aflautada engrossaram a voz ao balcão, à espera que viesse uma Greta Garbo atendê-los?
Anna Christie foi um êxito esmagador. A crítica deu beijos àquela boca e àquela língua que afogavam em whisky a solidão e a má fortuna. Houve só um sofrido ai da sofisticada New Yorker: não era plausível que uma mulher tão bela sofresse tantos tormentos. Ainda hoje a New Yorker chora o sofrimento da mulher feia.
https://youtu.be/_8Rvqm5XR7E
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.