Como sempre, o pronunciamento dos eleitores propicia diversas e opostas interpretações, todas com um fundo de verdade. O PSDB solta fogos por ser o maior vitorioso nas urnas, o presidente Michel Temer respira aliviado por 80% dos prefeitos eleitos serem de sua base de sustentação e o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, se projeta para 2018 como o tucano mais competitivo.
No outro extremo sobram avaliações cinzentas: uns dizem que o Brasil deu uma brutal guinada à direita, com uma onda conservadora varrendo o país, de ponta a ponta. Para outros, a eleição teria sido a própria negação da política, tanto pela via do “niilismo” – abstenção, votos nulos e brancos – como pela via do candidato “não político”.
Há um toque de ligeireza, superficialidade e pedantismo nessas conclusões. O recado das urnas ainda não está devidamente assimilado. Pode estar havendo uma baita confusão sobre o chamado desencanto com a política.
Para entendê-lo, é necessário mergulhar no tempo, ir até as jornadas de 2013, quando os brasileiros expuseram sua insatisfação quanto à secular ineficiência dos serviços públicos e as anacrônicas instituições político-partidárias, inteiramente descoladas do cotidiano das pessoas.
O “sem partido” de 2013, grito das ruas não entendido pela esquerda tradicional, transformou-se no “eles não me representam”, no voto nulo, em branco, na abstenção ou na sua contraface, o voto no “não político”.
Os anos dourados do lulo-petismo geraram uma ilusão. Nossos serviços públicos continuavam sendo da época da pedra lascada, o modelo político perpetuava as iniquidades. A crise de representatividade – partidos, sindicatos, movimentos sociais formais – começa a saltar aos olhos com o advento da hiperconectividade, com o fim das bipolaridades, com a transversalidade e tangibilidade das bandeiras.
Em certo sentido, um fenômeno mundial, agravado no Brasil pelo modelo de presidencialismo de coalizão, pautado na repartição do botim da coisa pública, e pela pura e simples cooptação de centrais sindicais, UNE, MST e outros dinossauros.
Mas o “distributivismo” subsidiado pelas commodities escondia tudo. Quando a fonte secou, o lodo veio à tona.
Em 2014, vimos um país dividido ao meio, com o lulo-petismo ganhando uma sobrevida que não resistiu à hecatombe que se seguiu. Havia, já na última disputa presidencial, o desejo de mudar, mas o medo falou mais alto.
Sim, a eleição de 2016 é a de mudança de paradigmas. A seu modo, o eleitorado superou a bipolarização que vinha dando o tom da política brasileira desde a última década do século XX, suprimindo, pura e simplesmente, um de seus pólos: o PT.
O que fará com o outro pólo vai para a rubrica de médio prazo. Depende de qual será o desempenho do PSDB e dos vitoriosos, se eles corresponderão à agenda demandada pelas urnas, ou se provocarão novas frustrações. Só há uma certeza: a fatura será cobrada em 2018.
Os eleitores não renegaram a política. Renegaram essa política que está aí.
O protesto das urnas – ou de quem nela sequer compareceu – tem o sentido de que não basta apenas uma reforma política no sentido estrito do termo, de adoção de novas regras, como fim das coligações nas proporcionais, cláusula de barreira, voto-distrital, misto ou puro.
As urnas clamaram por uma nova mentalidade, uma nova cultura, uma nova forma de se fazer política. Esse é o complicômetro. As instituições são elas mesmas e os homens que as compõem também. Como mudá-las com as mesmas caras que ditam o jogo?
As categorias esquerda-direita são insuficientes para explicar o complexo pronunciamento das urnas. Verdade, pode-se pinçar aqui e ali alianças e pensamentos indicadores do campo de vários candidatos eleitos. Mas seria reducionismo atribuir aos milhões e milhões de brasileiros uma virada em direção ao conservadorismo.
Na verdade, os eleitores disseram não a tabus da esquerda, ou de sua maior parte. Eles descobriram, a duras penas, que as benesses do Estado, quando promovidas de forma insustentável, recaem sobre suas costas. Põem em risco seus empregos, sua saúde, sua família.
As urnas renegaram a política de atender as corporações em detrimento do conjunto da sociedade, de se gastar mais do que se arrecada, de rupturas de regras democráticas, como o respeito ao patrimônio público e privado.
Também abriram espaço para o Brasil enfrentar temas delicados, como meritocracia, tamanho do Estado, estabilidade no funcionalismo público e direitos iguais na aposentadoria, sem se vergar às patrulhas ideológicas.
E ainda há quem diga que os eleitores são despolitizados…
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat em 2/11/2016.