Ao escrever no Expresso, não faço mais do que dar aos jornais o que os jornais me deram a mim. Quando era adolescente, com aspirações a James Dean, vi em Luanda filmes que não devia ver. Não por serem proibidos. Sucede que os lugares em que me sentava eram os de alguém que não tinha ido.
Havia três cinemas informais perto de casa. Um era o São Domingos, dos padres capuchinhos italianos, outro era o da 7ª esquadra da Polícia, com balcão para as chefias e plateia para os polícias rasos. E havia o cinema dos sargentos, esplanada de um quartel, perto da Estrada de Catete, para entreter a tropa. A minha cinefilia nunca se libertará, nem quero que se liberte, destas duas pulsões. Primeiro, da lírico-religiosa com êxtases de São João da Cruz ou da santinha de Ávila. E, segundo, da pulsão bélica que escancara o Rambo mercenário que há em mim.
Mas esses eram cinemas de reprise e eu ansiava por estreias, pelas grandes salas, o Restauração e o Miramar, plateias de colares cintilantes, talvez uma ultrajante minissaia. Consegui e passei a ir três vezes por semana. A semanada de miúdo de liceu não dava para tanto. Salvaram-me os bilhetes reservados aos desinteressados críticos de cinema do jornal “Província de Angola”, que um amigo da minha rua, aprendiz de tipógrafo, filava com ratice e garras de falcão.
Não foram só os filmes que rapinei, à maneira do Doinel de Truffaut. A minha educação literária foi também insidiosamente traficada. Morava na rua um inspector da PIDE. Tinha um filho, mais velho do que eu, que foi meu mentor. O meu amigo era comando e poeta, de espírito grande e aberto, e o pai trazia-lhe livros proibidos. Eram tantos livros proibidos e eu podia lê-los todos. Li o Vilhena, os chatíssimos romancistas soviéticos, o que de Sartre nenhuma livraria cheirava.
Padres, polícias, sargentos, um inspector da PIDE, os bilhetes de críticos de cinema que se estavam nas tintas alimentaram-me o eclético espírito juvenil. A cultura era um risco aventureiro e era para se rapinar. Dei no que dei, diletante sem remédio, com desejos de Miss Universo: paz entre os homens de boa vontade. Não sei onde pára o meu amigo dos filmes, mas do meu grande amigo dos livros, devo dizer que é comunista. E, como um filho com eles no sítio, protegeu o pai até ao dia da sua morte.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Na foto, “o Miramar, o mais belo cinema do mundo, baía de Luanda em fundo, estrelas e cruzeiro do sul à noite”.
Belo cinema Manuel!
De rsto creio que proveitosa a rapina.
Obrigado, amigo Miltinho.