E se a história do cinema fosse só a recorrente variação da mais famosa tela do mundo? Imaginem que estão a falar com Daniel Arasse, historiador de arte francês, falecido em 2003. Mesmo morto é um provocador. “Já viste a Mona Lisa?”, diz ele, avisando-me: “Deixa-me descrever o quadro e não te admires do monte de coisas que vais admitir nunca ter visto.”
Ninguém repara, disse-me, e eu vi logo que era verdade: a Gioconda está sentada numa varanda. Não se vê, mas há uma coluna à esquerda e outra à direita. São as colunas de uma varanda fechada por um murete baixo que, no quadro atrás dela, mal distinguimos.
Pela posição, a Gioconda está sentada num cadeirão de braços altos, num dos quais apoia (confirmem!) o braço esquerdo. A varanda está num ponto alto, porque a perspectiva é a de um fundo distante, talvez de rochas, terra e água, de difícil legibilidade. Eu juro que à esquerda da cabeça da Gioconda vejo uma massa em que se fundem rochas e árvores, enquanto Arasse diz que não senhor, nem uma árvore, só a linha fina de um lago, e nenhuma presença humana. Dando o dito por não dito, o provocador Arasse diz, depois, que não é bem assim. O olhar de Gioconda, jura ele, denuncia a presença de Leonardo Da Vinci, seu pintor.
Ela olha para Leonardo, mas há também um sorriso. Arasse ensina-nos que foi o primeiro sorriso da história da pintura. E a direcção do sorriso, digo agora eu, não coincide com a direcção do olhar. A Mona Lisa sorri para Francesco del Giocondo, seu marido, que, de pé, três passos atrás de Leonardo, a contempla, orgulhoso dela e dos dois filhos varões que já têm. Não se vêem, mas há dois homens no quadro e é a Gioconda que os revela: Leonardo no olhar, Francesco no sorriso.
Nos dedos longos que acariciam a seda da manga e também no peito que, depois de sofregamente beijado por Francesco, já amamentou, vê-se que Gioconda é uma mulher mimada: sabe que é modelo de uma pintura que vai pendurar no novo palácio que o marido lhe comprou.
Não pode é adivinhar que Leonardo nunca lhe entregará o quadro. Nem adivinha que, quatro séculos depois, nascerá uma nova arte que, no enquadramento e no fora de campo, no que deixa ver e no que esconde, na denúncia de um olhar e no reflexo de um sorriso, repetirá este quadro, ou as suas regras, 24 vezes por segundo.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.