Cheiras muito a Quinta Avenida

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Oito da manhã ou oito da noite, com Dorothy Dandridge todas as horas eram sensuais.

Ainda nem meio-dia seria quando ela entrou no escritório de Otto Preminger. Actriz negra, ou mestiça, ou café au lait, como escrevia, nos anos 50, a imprensa negra americana, queria ser a Carmen da Carmen Jones que a 20th Century Fox mandara Preminger filmar. Vinha sofisticadíssima, ou seja, disfarçada. Camuflara-se num tailleur da Saks, um chapéu de rainha de Inglaterra. Atrás da sua secretária art deco, Preminger, bruto como as casas, olhou para ela e, se combinarmos o que eu penso que ele disse com o que os livros dizem que ele disse, saiu-lhe esta frase: “Ó filha, cheiras muito a Quinta Avenida. Se vens para Carmen, vieste ao engano.”

Ao engano já Dorothy levava mais de trinta anos. Trazia no corpo mil gotas de sangue em ebulição e não se ficou. Era uma cantora de sucesso em Nova Iorque, mas o que queria era Hollywood. E Hollywood, preconceituosa, para não dizer racista, escondia-a atrás de um avental de criada, de um pé descalço escravo. Em Carmen Jones, concebido como um “filme de raça”, ou seja, destinado à população negra, Dorothy via-se protagonista, ao lado do já famoso Harry Belafonte.

Saiu do escritório de Preminger e foi directa ao guarda-roupa da Fox. Atirou ao lixo a doçura dos trapinhos Quinta Avenida e vestiu uma rude blusa preta que não se atrevia a cobrir-lhe mais de metade do nobre peito e uma saia vermelha de racha lateral, que deixava faiscar um metro de perna. E, com uma daquelas formas de andar que desequilibram o mundo, trouxe de novo o longilíneo S maiúsculo que era o seu corpo até Preminger.

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Escusava de dizer, mas digo: houve um sobressalto atrás da secretária art deco de Preminger. Carmen fechara a porta depois de entrar. No filme, ela viria a cantar este verso: “Um homem trata-me como se eu fosse lama e é esse o homem a quem dou tudo o que tenho.” Deu tudo a Preminger, que, casado, muito e clandestinamente a amou.

Esse filme bastou para que Hollywood a nomeasse para o Oscar e a chamasse a “Marilyn Monroe negra”. Comparação fatal: o incompleto amor de Preminger e a sexualizadíssima imagem acolchoaram um destino trágico. Sem glória, Dorothy morreu, doze anos depois, com uma overdose de antidepressivos.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

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