Agora, que já nem é preciso pedir licença a Tom Cruise, comecemos o ano com a límpida e clara nudez de Nicole Kidman. Com ou sem licença de Cruise, despiu-a Stanley Kubrick em Eyes Wide Shut.
Estava o ecrã todo a negro para melhor passarem os nomes dos artistas e, mal se lia o nome do obsessivo Kubrick, a omnipotência dele punha-nos os olhos numa sala iluminadíssima. Víamos uma mulher de costas. Fosse ou não porque os violinos da valsa nº 2, da Suite para Orquestra de Shostakovich, lhe afagassem a loura penugem do pescoço, ela deixava cair o vestido preto. E noto que, atrapalhado, nem falei do diluviano decote que, vestindo, já despia o lado lunar e calipígio de Kidman.
Cai-lhe um vestido preto aos pés e Nicole Kidman não tem nada por baixo. Está ali, altíssima e nívea, as costas perfeitas, a delicada curva da cintura, a aveludada perna direita que se levanta para sair da mancha de seda negra que é agora o vestido no chão, depois a ágil perna esquerda.
E, entre a cintura e as pernas que tudo sustentam, está essa região sumptuária, criada, como tudo o que é redondo e a dobrar, só para estético enlevo da humanidade e insofismável prova da existência de Deus. É uma mulher nua, em cima de um par de sapatos de finos saltos, as pernas a suave distância uma da outra, para que entre elas passe a santa luz. Bailarina de Degas sem tutu, toda a sua palpável plenitude coroada pela alegria de um arco de violino de Shostakovich…
Filme que começa assim não é gago nem cego. Jean-Luc Godard, realizador circense, começou com igual rabo, que por acaso era diferente, o seu Le Mépris. Muito menos branca, num quarto de sombras e uma réstia de luz deliquescente, está deitada e nua Brigitte Bardot. É irresistível olhar-lhe para as tão displicentes nádegas, porque ela mesmo diz ao actor com quem contracena, mas também a toda a plateia: “E as minhas nádegas, achas que são bonitas?”
A pergunta de B.B. é irrespondível por ser feita directamente aos olhos. Responde-se-lhe de “olhos desmesuradamente fechados” como o título de Kubrick nos ensinou. E termino: o cinema é a arte de fazer perguntas aos olhos, perguntas que vão à origem, à escassa essência. Não admira que a inverbalizável mulher nua seja, tantas vezes, o seu começo e o seu fim, seu génesis e seu apocalipse.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.