Até hoje não sei bem como vim parar no Refúgio dos Velhos Camaradas. Buscava apenas um lugar para descansar minha velhice longe das tormentas da cidade. O lugar pareceu simpático; acho que o nome me atraiu. Apenas dois prédios, um voltado para o outro.
A paz durou dois dias. No terceiro, o vizinho de cima começou a arrastar móveis. Esperei um pouco. A barulheira continuou. O que se faz numa situação dessas? Peguei a vassoura.
Dei a ele cinco minutos. Não parou, agi: cutuquei o teto com o cabo da vassoura. Tum, tum, tum. O ruído cessou, mas foi substituído por outro. Agora, era ele que cutucava o chão com cabo de vassoura! Ousadia. Parou um nadinha, e voltaram as cutucadas. Desaforo.
Espere… Apurei o ouvido. A laje que separava nossos andares deveria ser pouco espessa, pois uma pancada mais forte podia ser claramente distinguida de uma mais fraca. A forte reverberava por mais tempo. A fraca, por menos. Como pulsos do… oras, do velho código Morse, dos meus tempos de embarcado. Sinal longo, traço (-); sinal fraco, ponto (.)
Ouvi: “–.- q ..- u . e — m . e …- v — o -.-. c . e” Peguei a vassoura. “…- v .. i –.. z .. i –. n …. h — o –n —o …- v — o –n —-o …p .e -..d .-a -.-.c —o ” Resposta rápida. “…s ..-u -…b .-a .–.p .-a .-.r .-a -t —o –m .-a .-.r ..-u –m -t .-.r .-a –.g —o”
Assim nasceu uma grande amizade com Fred Sextante. Andávamos ambos pelos 70 anos. Dois marujos que haviam feito carreira. Ele chegara a suboficial, eu a capitão. Passamos noitadas na minha casa ou na dele recordando aventuras. Por puro prazer, abolimos o vinho em favor do rum, mais apropriado para gente do mar.
No segundo mês, eu estava debruçado no pequeno terraço da sala, que abre para o edifício da frente. Uns cem metros nos separam. Olhar perdido, pensava na vida. Então noto alguém acenando alguma coisa. Era outro sujeito, do seu terraço, no edifício em frente. Mas o quê… Pedaços de pano…
Tinha uma toalha de prato em cada mão. Ergueu os dois braços para cima, formando um vê. Então estendeu os dois braços na horizontal. Está tentando me dizer alg… Claro! O código de bandeiras. Como se estivéssemos nos vendo do convés de nossos navios.
Esperou alguns segundos, para ver se eu tinha percebido. Então começou. Dois braços à direita: um para o alto, outro na horizontal. Braço esquerdo para cima, direito para baixo. Por fim, direito para baixo. “o-l-a” . Continuou. “ma-ru-jo”.
Corri para o quarto e voltei com duas toalhas de rosto. “o-l-a-m-a-r-i-n-h-e-i-r-o -o- q-u-e -q-u-e-r”. Ele, com seus panos de prato. “p-o d-e c-a-f-e”.
Dez minutos depois, abri a porta para Tércio Meio Nó. Amigo de Fred Sextante, que tinha falado de mim. Veja a minha situação, ele disse. Convidou uma garota, abasteceu o apartamento com boas bebidas, incluindo rum, para fazer charme. A garota chega, e não aceita nada. Sua única bebida é café. E o nosso lobo do mar só toma Toddy. Vi você no terraço e arrisquei a sorte, disse ele, pegando a xícara com o pó, que eu lhe passava.
No dia seguinte nos encontramos no apartamento de Meio Nó, para não desperdiçar o estoque de bebidas. Então, marujo, como foi? A garota gostou de tudo, bebeu café, mas só quis ver televisão, ele disse, desenxabido. Ah, ah, ah… Nos divertíamos.
O Refúgio dos Velhos Camaradas fazia jus ao nome. Com outros contatos (por palavras, não códigos) descobrimos mais pessoal de bordo aposentado. Formamos uma amável confraria. Cada qual tinha uma vida para contar. E aí encarei a ressaca, disse Jonas, o Timoneiro, com ar maroto. Ressaca do mar? perguntei. Não, respondeu. Do corpo. Ah, ah, ah.
Ontem, da janela do quarto, vi fumaça subindo de um terreno baldio, bastante longe. Olhando bem, notei que vinha em tufos. Curioso, pensei; não tem jeito de incêndio. Um tufo isolado, dois ou três juntos… Intervalo, mais tufos. Subitamente senti um arrepio. Isso parece mensagem de índio. Achei que era demais. Fechei a janela e fui tomar um trago.
Janeiro de 2015