Volto a falar de Jules et Jim, filme em que François Truffaut se deu ao único verdadeiro luxo na vida de um homem, o de ser, ao mesmo tempo, fiel e infiel. A quem? Não interessa? Interessa e já lá vamos.
No filme, inspirado no livro autobiográfico de Henri-Pierre Roché, uma mulher ama em simultâneo dois homens, com o sossegado e emotivo consentimento dos três. Mas em Jules et Jim, os dois homens, um alemão e outro francês, são só silhuetas do turbilhão que foram em vida.
Jim é Henri-Pierre, o escritor, amigo da vanguarda parisiense, que convenceu Gertrud Stein a comprar as primeiras telas de Picasso. Inventou, se quiserem, o cubismo, metendo dólares nas bocas dos artistas, para lhes dar músculo ao braço que pinta. Foi o primeiro francês a ler A Interpretação dos Sonhos de Freud e escreveu-lhe até, a contar um sonho em que a própria mãe o violava.
Fora Franz Hessel, o Jules do filme, a revelar Freud a Jim. Era amigo de Walter Benjamin, com quem traduziu Proust para o alemão. Apaixonado pelos franceses, traduziu também Baudelaire e Stendhal. A estes Jules e Jim reais unia-os tanto a amorosa partilha de uma assembleia de mulheres, como a exaltada vivência da literatura e das artes. Não era lá serem cultos, era viverem aquilo: os livros, as telas, os espectáculos iam directos à veia. A actual ideia de uma cultura desvirilizada, paga por secretarias de Estado, ser-lhes-ia abominável. Neles, a cultura tinha de ser uma forma de tesão.
Jules et Jim não será completamente fiel a estes carroceiros das artes. Por ser de Truffaut, só é fiel a uma mulher. Jeanne Moreau, boca, olhos, rosto, voz e cabelos, gamam o filme e tomam conta dos nossos olhos.
Truffaut soube por carta que, ao filmar assim Jeanne Moreau, fora afinal fidelíssimo. A carta assinava-a uma desconhecida Helen Hessel, cujos 75 anos eram o que restava da mulher real amada pelos já falecidos Jules e Jim. Helen correra a ver o filme e, na sala escuríssima, vira “ressuscitar o que tinha vivido cegamente”. Perguntou a Truffaut: “Que afinidade o iluminou ao ponto de revelar o essencial das nossas reacções íntimas?” Há perguntas que valem mil elogios.
Uma curiosidade: o filho dela (e de Jules) é Stéphane Hessel, autor do panfleto “Indignai-vos”. Cada geração tem o seu turbilhão de vida.
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Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.