Sobre Jim Jones, e como é difícil ouvir a inteligência

Lotamos a Igreja da Consolação. O salão do Sindicato, ali pertinho, na Rego Freitas, era pequeno para tanto jornalista, e aí a Arquidiocese, então chefiada por Dom Paulo Evaristo Arns – um dos pilares com que se podia contar no enfrentamento da ditadura, que havia tido as atitudes mais firmes possíveis quando do assassinato de Vladimir Herzog nos porões do II Exército, quatro anos antes -, havia emprestado a igreja para a assembléia que votaria pela greve dos jornalistas do Estado de São Paulo.

Mais tarde, o articulista Lenildo Tabosa Pessoa, um católico extremamente conservador, faria um texto no Jornal da Tarde chamando a Igreja da Consolação de Discoteca do Evaristo.

Na Discoteca do Evaristo, estávamos todos doidinhos para votar logo pela greve. Quando digo estávamos, me refiro a nós, os mais jovens, e os mais radicais.

Era 1979, e havia duas forças políticas disputando a liderança do Sindicato dos Jornalistas – uma mais ligada ao PCB, o velho, eterno Partidão, e outra formada por uma frente de diversos grupos que, um ano depois, fundariam o Partido dos Trabalhadores.

zzzzzzgreveO então presidente do Sindicato era ligado a essa segunda força. Consegui me lembrar do nome dele: chamava-se David Moraes. Não sei a grafia – pode ser Davi Morais. Ficou conhecido na história do jornalismo pátrio como Jim Jones – o nome do louco pateta que, pouco antes, havia levado sua seita de doidões a um suicídio coletivo numa das Guianas.

Jim Jones e seu povo queriam por que queriam fazer greve de jornalistas. Não me lembro qual era propriamente a reivindicação, mas a verdade é que não importava a reivindicação: a Jim Jones e seus fiéis importava era fazer a greve. Pois se o Lula conseguia fazer greves dos metalúrgicos ali perto, no ABC, por que é que nós, tão mais intelectuais, não conseguiríamos?

Uns 37 neguinhos fizeram uso da palavra encaminhando para a greve. Jornalista adora o som de sua própria voz, e então os encaminhamentos eram longos. (Usei, propositalmente, as expressões usadas no sindicalismo.) Me lembro especialmente de Juarez Soares, radialista, voz possante: o cara convocava a greve como se fôssemos com ela imediatamente descer da Sierra Maestra para tomar La Habana, como se fôssemos diretamente na saída da Discoteca do Evaristo ocupar o Planalto e o Alvorada, e em seguida fechar a Bolsa de Valores de Nova York para sempre.

Lá pelas tantas, um senhor de cabelos grisalhos foi ao microfone da Discoteca do Evaristo. Falou pausadamente. Contra aquelas metralhadoras de palavras de ordem, de vamos lá, abaixo a ditadura, viva nós, viva o Chico Barrigudo, o povo unido jamais será vencido, falou frases com começo, meio e fim e, sobretudo, lógica.

Argumentou que a greve seria inócua: os jornais continuariam a sair, e portanto a greve dos jornalistas apenas demonstraria que os jornalistas que fizeram a greve são desnecessários.

Usou o próprio fato de falar pausadamente, e de ter cabelos brancos, para pedir um pouco de reflexão.

Não me lembro exatamente a frase, mas ele disse algo do tipo: “Sou a voz calma que vem aqui conversar com vocês”.

O nome dele é Emir Nogueira. Tinha altíssimo cargo na Folha, creio que secretário de redação.

Nós, os  jovens, nos unimos aos radicais, e aprovamos a greve. Mas que voz calma, que nada! Bota pra quebrar, Juarez Soares, vamos lá derrubar a ditadura brasileira, implantar o socialismo no mundo inteirinho, nóis é foda!

***

A greve de 1979 foi de fato um suicídio coletivo, à la Jim Jones. A catigoria saiu do episódio absolutamente enfraquecida. Só o advento da internet faria dano maior aos jornalistas de São Paulo que a greve insana de Jim Jones.

Na eleição seguinte para a diretoria do Sindicato, Emir, o homem da voz pausada e dos cabelos brancos, foi eleito; Lu Fernandes foi sua vice, e depois assumiria a presidência.

***

Me lembro de Emir Nogueira agora, quando vejo no Facebook pessoas mandando Fernando Henrique Cardoso calar a boca. Pessoas indignadas porque FHC, o único grande estadista brasileiro vivo, um dos intelectuais mais lúcidos que já houve, diz que ainda não vê motivo suficiente para pedir o impeachment de Dilma Rousseff.

Tentei falar alguma coisa no próprio Facebook. Escrevi lá que não é porque milhões de pessoas fomos às ruas, em menos de um mês, que temos motivos jurídicos suficientes para impichar a mulher.

É meio inútil tentar falar alguma coisa que tenha relação com raciocínio quando estamos no Maracanã em pleno Fla-Flu, ou na Discoteca do Evaristo com 37 neguinhos discursando pra sairmos dali já que acabávamos de assumir o poder em Manhattan, Berlim, Londres, Roma, Paris, Moscou.

A voz da lucidez não fala alto. E os ouvidos idiotas são bastante surdos.

Acho que este país não vai bem, não. Quando todo mundo berra, e ninguém ouve, as coisas não estão boas.

21 de abril de 2015

4 Comentários para “Sobre Jim Jones, e como é difícil ouvir a inteligência”

  1. Sérgio, as palavras do Emir Nogueira foram proféticas, lembra? Decidida a greve, se não me engano na assembléia do Tuca, fomos para o reduto pós-fechamento de edição, de toda madrugada, o Bar do Alemão. Na minha mesa devíam estar nossos mais chegados, acho que você também. Este grevista acidental estava de costas para a porta de entrada. Súbito, sente um toque no ombro.
    Eram o Rodrigo e o Ruyzito Mesquita, com uma braçada de jornais. Coube justamente a mim pegar o pacote. Lá estavam vários exemplares do JT, com a manchete: Jornalistas de S. Paulo estão em greve. Foi mau!

  2. Anos mais tarde, o Sindicato já dominado pela seita, tinha um presidente totalmente focado na deposição do Collor e seu bando.
    Ele estava tão focado, mas tão focado na política partidária que ‘esqueceu’ do Estatuto e dar início ao processo de eleição, perdendo todos os prazos legais.
    O Sindicato andava tão abandonado pela classe que nem se ligou na safadeza. Não sei como resolveram o problema, mas se mantiveram no poder por muitos anos.

  3. SÉRGIO tem toda razào quando afirma; ‘A voz da lucidez não fala alto. E os ouvidos idiotas são bastante surdos’.

    O repórter Fausto Macedo, do Estado de S.Paulo, publicou em seu blog que a mulher do ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto, Giselda de Lima, possui renda mensal de R$ 300 mil. Sua renda é de R$ 3 mil por mês.

    Uma informação como essa é fundamental para formar a opinião dos leitores sobre a inocência ou culpabilidade da pessoa que é objeto da notícia.

    Os jornalistas, nào a imprensa PIG, sào importantes para a formaçao de opiniào, o controle da mídia nào afetaria o trabalho de bons e verdadeiros jornalistas. Jim Jones é morto.

    FHC, o único grande estadista brasileiro vivo, um dos intelectuais mais lúcidos que já houve, diz que ainda não vê motivo suficiente para pedir o impeachment de Dilma Rousseff.

    FHC está tentando nos avisar, como é difícil ouvir a inteligência.

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