Já tinha visto Os 4 Cavaleiros do Apocalipse, estranho filme de Vincente Minnelli. Sabia da guerra no mato de Angola, mas fome, peste e morte? Os meus 17 anos só tinham olhos para o gira-discos novo, comprado com o primeiro salário colonial. Curtia Black Sabbath numa varanda semi fechada.
Do outro lado da rua, o musseque. A música chegava lá. No Natal desse ano, pus os Led Zeppelin de lado e abri os ouvidos aos fados dos meus pais. Era um disco gravado por Amália e Vinicius na casa da rua de São Bento, em Lisboa. Ouvia, em Luanda, um encontro de Portugal e Brasil como nunca mais houve. Já ouviram? E ouviram Vinicius a dizer “O Dia da Criação”? Melopeia encantatória, Vinicius recitava um verso e uma plateia portuguesa, Amália à frente, respondia-lhe.
“Neste momento há um casamento” clamava a voz do poeta, “Porque hoje é sábado” diziam os convivas. “Há um incesto e uma regata”, quase cantava o brasileiro e logo o fatalista coro lusíada “Porque hoje é sábado”. Já não sei quando, talvez Vinicius estivesse a sair deste seu verso “Há um ariano e uma mulata”, ou então deste “Há um grande acréscimo de sífilis”, o coro português foi abafado por uma infantil algaraviada africana num estrepitoso “Porque hoje é sábado”. O meu disco estava na rua.
Corri as cortinas e na noite de Luanda, a espreitar entre os canteiros, uma dúzia de miúdos vindos do musseque. Riam-se com o que dizia o mais velho brasileiro. Ouviram, cantaram. Pularam mesmo. Ficou mais chocolate e feliz o meu Natal de Vinicius e Amália.
Daí em diante, punha um pé na rua e os candengues só me gritavam “porque hoje é sábado”. Às vezes, voltavam ao muro e à varanda e pediam, “pões então o porque hoje é sábado”. Deliravam e riam em dois versos. O primeiro “Hoje é sábado, amanhã é domingo”, o outro “Há uma mulher que vira homem”. Não resistiam ao óbvio ululante de um, à esbugalhada surpresa do outro.
Era novo no bairro. Mal sabia que, nessa noite, os versos de Vinicius iam ser o princípio de uma bela amizade com o lado de lá da rua. Amizade que não estremeceu quando – peste e fome, guerra e morte – os desembestados cavaleiros de Minnelli chegaram e os dias se tornaram trágicos. Mas isso já é outra história que não cabe aqui contar. Até porque hoje não é sábado.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Gira-discos é ótimo.