Quem quer filmar Kant?

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Com des­pu­dor e veni­a­li­dade, em cró­nica ante­rior, exibi a lín­gua de Sarita Mon­tiel. Uma lín­gua, por elás­tica que seja, não é, dizem-me, assunto nobre. Vinha penitenciar-me e tro­peço em Imma­nuel Kant.

Já sabia, fosse ou não por impe­ra­tivo cate­gó­rico, que ele lhe bebia bem. Kant carregava-lhe no tinto com, diga­mos, uma ale­gria sin­té­tica a pos­te­ri­ori. O que eu não sabia é que o regu­la­rís­simo filó­sofo expe­ri­men­tou tam­bém as incer­te­zas de inte­res­ses român­ti­cos. Nunca casou, mas, por fraquís­simo que fosse, man­teve comér­cio com o outro sexo. Prova-o o excerto de uma carta que o mes­tre escre­veu a uma senhora não identificada.

A carta é de rup­tura. Uma jere­mi­ada que eu, con­victo adepto da estóica linha Bogart, me custa acei­tar. Kant não era de gran­des efu­sões líri­cas e fazia da lin­gua­gem uma pica­reta. Mas não se escreve a uma mulher para lhe ati­rar à cara que ela nos usou como um meio para atin­gir fins egoís­tas. Esse é um sacri­fí­cio menor – Deus as aben­çoe – a que toda a minha gera­ção se pron­ti­fi­cou a render-se com altruísmo.

E vem a frase seguinte. Pri­meiro, parece que tudo vai pio­rar: Kant diz, a essa bru­mosa senhora que terá amado, ser “impe­ra­tivo” que ela “reflicta no sig­ni­fi­cado da lei uni­ver­sal”. Temem o pior? Tam­bém eu. Mas, depois, um arre­ba­tado Kant tem o seu glo­ri­oso momento Sarita Mon­tiel, e cito: “… é impe­ra­tivo que deixe de fazer aquela coisa que faz com a lín­gua. Odeio isso.”

Se inven­tei este passo? O excerto roubei-o à New Yor­ker, revista que tem o melhor depar­ta­mento de veri­fi­ca­ção de fac­tos do mundo. O que nem a New Yor­ker veri­fi­cou, nem eu sou capaz de visu­a­li­zar, por mais que a ima­gi­na­ção me bata asas, é que coisa bizarra faria a lín­gua da mulher em cuja boca se pas­ma­vam os olhos prus­si­a­nos de Kant. Punha a lín­gua de fora? Daria, na fechada boca, os esta­li­dos que tor­nam tão rít­mica a fala de uma mulher bosquí­mana? Fica­ria sus­pensa, na boca entre­a­berta, quase a tocar a fiada de branquís­si­mos den­tes? Viria a lín­gua, obs­cena, hume­de­cer de bri­lho os ace­re­ja­dos lábios dela?

E, não sendo de Sarita Mon­tiel, de quem era essa lín­gua imper­ti­nente? De Maria Char­lotte, senhora casada, rai­nha dos bai­les e fes­tas de Königs­berg, que numa carta lhe man­dara um beijo, pedindo que a visi­tasse a acertar-lhe o tic-tac do seu relógio?

Tal­vez haja um filme sobre Kant por fazer. Mas onde está o Fas­s­bin­der que o faça?

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Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

Nas fotos, a musa de Fassbinder, Hanna Schygulla.

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